segunda-feira, 14 de maio de 2012

A Bomba do Amor - Parte 4

Com o pêndulo entre os dedos, Lucas pôde sentir que um palpite permeava o seu imaginário. Olhava para Tia Jú, para o livro e para os colegas. Estava irremediavelmente inquieto. Que mensagem aquela vibração tentava transmitir? Folheou mais uma vez o livro de poemas, e, a cada página, o palpite se construía mais, amiúde se tornava uma mensagem clara. Foi então que a professora os pediu que escolhessem o poema que achassem mais bonito, fossem à lousa e o escrevesse. O primeiro a ser escolhido foi Lucas. A inquietude tomou-lhe as pernas, a cabeça e o coração. Sentiu que estava prestes a fazer algo de augusta importância. Pôs-se frente à sala, fitou os seus coleguinhas nos olhos e suspirou profundamente. Virou-se, pegou um giz sobre a mesa da professora, abriu o livro na página da poesia escolhida e começou a escrever. A cada palavra escrita o pêndulo vibrava mais forte, junto às batidas fortes de seu coraçãozinho.

As Sem-Razões do Amor

Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante
e nem sempre sabes sê-lo
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamento vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Terminou de escrever o poeminha de Drummond e virou-se. Quando se deu conta viu que todos os coleguinhas e até a professora estavam profundamente emocionados. Pedro e Júlia, que viviam brigando e implicando um com o outro, estavam, naquele momento, abraçados. Tiago, o valentão da turma, derramava lágrima sem parar, e a professora, que já havia lido aquele poema dezenas de vezes, olhava-o com absoluta incompreenção, pois não sabia o porque de estar tão emocionada. A sala de aula ficava cada vez mais harmônica e podia se sentir no ar algo de leve e bom. Lucas, depois de alguns segundos de perplexiadade, soube que aquilo era, certamente, obra do pêndulo de Melquíades. Vó Meméia havia lhe dito da Nitroglicerina do Amor e a resposta da matéria prima dessa substância agora lhe era clara "é a poesia!".

Após a aula correu para casa. Entrou, viu novamente a porta do quarto da mãe fechada, respirou fundo e se trancou no antigo escritório do pai. Pegou várias folhas de papel, o livro de poemas e refletiu, por vários minutos, numa forma de, primeiramente, ajudar a sua amada mãe. Leu todos os poemas, mas nenhum lhe pareceu bom o suficente para tirar Luiza daquela profunda depressão. Queria algo que a deixasse, sem nenhuma dúvida, feliz. Precisava de ajuda. Saiu do quarto, pegou a bicicleta e pedalou o mais rápido possível para a casa da vó.

Meméia trabalhava em pequenos e delicados bonequinhos de biscuit quando Lucas entrou esbaforido pela porta da varanda. O neto, desajeitado, tirou um papel do bolso com alguns versinhos escritos e a pediu que os lessem. Sentiu-se extremamente feliz e contemplada, como se tivesse lido a mais pura essência do sentimento humano. Os bonequinhos que modelava ficavam a cada instante, depois daquela leitura, mais bonitos. Olhava para o neto, que parecia demasiado apreensivo, e sorria e gargalhava e lhe dava bonequinhos para que também modelasse. Ouviu a incrível estória do neto e fizeram algumas experiências. Meméia lia os poemas que estavam no livro e os poemas escritos pelo punho de Lucas. Foi então que a velhinha compreendeu a exata medida do poder que a mágica conferira ao netinho. Lucas podia tocar o coração das pessoas com a poesia, mas apenas com o que fosse escrito à mão.

- Vó, agora eu preciso ajudar mamãe. Mas não sei qual poema escolher. Quero deixá-la escandalosamente feliz.

- Lucas, eu tenho um palpite. Acho que nada seria mais forte do que algo escrito por você mesmo. Porque não há mais ninguém que ame tanto a sua mãezinha do que o próprio filho, não é verdade?

- Há sim. Você que é mãe dela.

- Mas quem tem o poder é você.

- Mas não sei escrever poesias. Nunca escrevi uma em minha vida.

- Ué, mas não há segredo. Só é preciso sentir, pegar a caneta e se deixar levar. Poesia é a arte do coração e para escrevê-la, basta sentir. Faça uma grande surpresa!!

- Sabe o que eu queria também?

- O que, meu lindinho?

- Que papai voltasse.

O pai de Lucas os havia abandonado do dia para noite, sem nenhum motivo aparente. Haviam ido ao circo um dia antes do sumiço. Lá riram, brincaram e se divertiram com todos aqueles espetáculos. O favorito, tanto de Lucas quanto do pai, era o terrível globo da morte. Assistiam os dois com os olhos entrecobertos, com apenas uma frestinha entre os dedos. Comeram pipoca, cachorro quente e compraram vário balões de gás hélio. Lucas imaginava quantos seriam precisos para que alçasse voo. Não imaginariam jamais o que seguiria. Fora no aniversário de Luiza que encontraram sobre a mesinha de centro da sala um bilhete.

Eu os amo, mas precisei partir. Espero que Lucas se torne um homem melhor do que eu.



terça-feira, 8 de maio de 2012

A Bomba do Amor - Parte 3

Lucas ouviu a estória do pêndulo com muita atenção. Fez vária perguntas sobre o misterioso Melquíades. Se a vó o vira outra vez, se trazia com ele outras relíquias encantadas, se ele ainda vagaria por aí junto com a incrível caravana. Entretando, Meméia não pôde responder aquelas perguntas. Passara a vida inteira imaginando as mesmas coisas, sempre esperançosa de encontrar o enigmático cigano mais uma vez. Por fim, ela entregou o delicado objeto ao neto, que o segurou com certo receio. Não sabia o que fazer com aquilo, como o ajudaria a construir a sua grande engenhoca.

- Vó, você descobriu o que ele faz?

- Nunca descobri ao certo, mas conheço o seu poder. Sei que poderá ajudá-lo. - disse a velhinha, confiante.

- Como então você conhece o poder se não sabe como funciona ?

- Eu descobri que a mágica funciona por seus próprios meios, e não por meio de uma lógica. Não é igual nos contos de fada em que basta pronunciar palavras encantadas que o encanto está lançado. O pêndulo funciona de acordo com os sentimentos de quem o carrega. - Lucas ouvia sem piscar os olhos - Ele me serviu a vida inteira, me ajudou a criar todos os meus iventos, a passar pelas situações mais sofridas e respeitar a mais profunda e verdadeira mágica.

A expressão do neto mudou.

- Então, por que não ajuda a mamãe? Por que deixou que Papai se fosse? Vó! Por que não fez nada? - Disse Lucas com uma tristeza enorme e uma decepção maior ainda.

- Lucas, meu amado neto - disse com ternura. O pêndulo só pode ajudar quem o carrega. Tentei passá-lo para Luiza ( mãe do Lucas ), porém, ela nunca acreditou em mim. Sempre achou que eram bobagens minhas, invenções, delírios! É por isso que não pude ajudá-la. Agora estou lho dando, na esperança de que consiga trazer alegria para sua mãe e para muitos outros com esse seu projeto tão bonito.

- Mas você disse que o pêndulo só é mágico para quem o tem.

- Mas disse também que ele funciona por seus meios próprios e de acordo com os sentimentos de cada dono. Querido, já está tarde. Deve ir para casa.

Já era noite. Lucas colocou o pêndulo de Melquíades no bolso e foi para casa. Encostou a bicicleta no portão, entrou e viu que o quarto da mãe continuava fechado. Empurrou a porta e, com ela entreaberta observou a silhueta lúgubre da mãe deitada.

- Filho, mamãe não está se sentindo bem. Já está na hora de dormir. Amanhã tem aula cedo. - Disse a mulher com a voz fraca e minguante.

Foi tomado por uma melancolia estranha ao coração dos pequeninos. Sentia saudades do tempo, não tão distante, em que era profundamente feliz. Do tempo em que o sorriso de sua querida mãe tinha o poder de arrancar-lhe a alegria do peito mesmo quando estivesse mais raivoso. Gostava de passar as tardes desenhando com suas canetinhas coloridas para depois mostrar a grande pilha de lindos desenhos, os quais Luiza comentava um a um com o júbilo saltando aos olhos. Não queria mais o frio e a aura soturna que tomara o seu lar. A volta dos tempos cálidos e luminosos era o seu maior querer. Foi dormir com o pêndulo apertado por suas mãos e não o soltou por um único instante.

Sonhara com toda a estória da vó. Com o velho Melquíades, com sua mãe, com o pai. A cada momento o sonho parecia prenunciar algo de grande que aconteceria na hora em que acordasse. Tivera alguns lapsos do futuro, todavia, não pôde os compreender, pois tudo era turvo e confuso. Com o tempo os sonhos foram se diversificando e dando lugar a sonhos mais leves e normais, até que a alvorada chegasse.

Pela manhã, acordou mal humorado. Não queria ir à aula, mas lembrou-se de que seria literatura o tema do dia. Sempre gostou da matéria pois adorava ler. Lia os mais diversos livros que a Vó Meméia constantemente lhe dava de presente. As Crônicas de Narnia, O Pequeno Príncipe, Sherlock Holmes, Vinte Mil Léguas Submarinas. Entretanto, essa aula não seria sobre fantasia, mas sim sobre poesia! Chegou à sua sala e a professora já começava a explicação.

- Alunos. Hoje Falaremos sobre o lindo mundo da poesia.

Todos ficaram perplexos, pois poesia sempre parecera algo demasiado chato e enfadonho. O semblante dos alunos não desencorajou a professora, chamada por eles de Tia Jú.

- Gente, a poesia é um forte modo de expressar o que se sente e um ótimo meio de presentear uma namorada! - Disse triunfante - Pois só os verdadeiros românticos escrevem poesia e conquistam a menina dos sonhos.

As meninas moveram a cabeça como se concordassem com as palavras da Tia Jú. Alguns meninos fizeram cara de eca e outros questionaram porque só as meninas deveriam receber poemas. Pouco a pouco a professora despertava o interesse dos alunos, que prestavam cada vez mais atenção na aula. Lucas estava absorto na explicação desde o inínio, pois aquilo o interessou fortemente. Como nas estórias da Vó Meméia, sequer piscou os olhos.

Durante o dia, Tia Jú os mostrou vários poemas: Shakespeare, Drummond, Pablo Neruda. Explicou a estrutura - como são separados em versos e estrofes - a metáfora, as figuras de linguagem. Contou da vida dos grandes poetas e de como gostava deles. Por fim, explicou o fenômeno como um grande céu, incólume, livre de tudo o que foge da essência, onde às estrelas são atribuídos significados. O brilho desses astros, no céu do poeta, é a reverberação de seus próprios sentimentos, de seu próprio eu. Era o esplendor da própria matéria que constituia o coração humano. Falou complicado e muitas das crianças, que ainda estavam na quarta série, não entenderam as palavras bonitas da jovem professora. Lucas estava extasiado. Compreendera cada palavra. Sentia que havia descoberto um grande tesouro cujo significado ainda se fragmentava em sua mente.

Foi então que um livro foi entregue a cada aluno. Deveriam ler as poesias e achar aquelas que mais os agradassem. Lucas pegou um livro de poemas de amor, leu vários deles e imergiu em um êxtase distinto. Parecia que a infelicidade dos seus dias sumira por aquele momento de reflexão. Cada estrofe o trazia paz indescritível. Sentiu, então, algo vibrar no bolso direito. Enfiou lá a mão e percebeu que o pêndulo vibrava forte. O que será que significava aquilo? Algo de mágico estava acontecendo.

domingo, 6 de maio de 2012

A Bomba do Amor - Parte 2

Fica aí a segunda parte de meu conto. Nessa segunda parte me inspirei em um de meus heróis literários.  Quem leu o "Cem Anos de Solidão" terá - espero eu - uma feliz surpresa. Um grande abraço para os leitores.


A Bomba do Amor - Parte 2



Meméia era a pequena Amélia quando chegou das cidades mais remotas que se podia ouvir dizer uma caravana de ciganos. Estava no quintal da antiga casa em que viveu a sua meninice  no momento em que o badalar dos sinos, as cantorias e o barulho das portas das casas se abrindo tomaram conta da pequena cidade. Correu para rua e se deparou com a festa dos ciganos que traziam consigo novidades e apetrechos dos mais exóticos e curiosos. Os vizinhos comentavam a grande visita. Uns estavam ansiosos por conhecer todo aquele mundo trazido de outros mundos. Outros maldiziam aquela gente; os chamavam de pagãos, charlatões e folgados. O importante é que a pequena cidade viveu por alguns dias uma grande festa trazida pela alegria daquela gente. Espalharam as lendas de seu povo: a do terror dos lobisomens, que faziam suas vítimas nas ruas da Romênia; a do povo que vivia nas profundezas da terra e que, por fim, conheceu a luz; a da cigana Esmeralda...

Ergueram, no perímetro da praça central da cidade, uma esplendorosa feira, dessas que não existem mais. Estava linda, muitíssimo colorida com tendas e barraquinhas ricamente adornadas de pedras preciosas e bordados brilhantes. No centro montaram um grande palco onde ocorreram apresentações e exibições memoráveis. Fora frequentada por todo tipo de gente, principalmente por viajantes que vieram das cidades ao redor para conhecerem os ciganos.

Numa tenda, em meio a feira, Amélia procurava pelos objetos que permeavam a sua imaginação, os quais recordava dos livros de contos de fadas e dos ludibrios contados por sua mãe ao pé de sua caminha. Imaginava que encontraria tais relíquias com os surreais nômades, pois tudo lhe parecia misterioso, místico e encantado. Dentre todas as estórias de sua infância, gostava mais daquelas sobre as maravilhas árabes e, por isso, procurava algo em especial. Fora a feira com o intuito de achar, principalmente, uma lâmpada mágica! Como aquela da estória do Aladim. Lembrava-se daquelas páginas inimagináveis e no que fazer com três incríveis desejos a serem realizados. Procurara por várias tendas. Vira máquinas impressionantes, cuja função sequer podia entender, engenhocas dos mais diversos tipos para as praticidades do quotidiano; vira a tenda do homem engolidor de espadas, dos mágicos ilusionistas e vira, também, os intrigantes espetáculos de adivinhações. Não encontrara a sua lâmpada maravilhosa. Não obstante, seria nessa tenda que encontraria algo de importância semelhante.

De um canto escuro um velho cigano a chamou pelo nome. Era encurvado, com roupa excentrica e gravidade na fala. Amélia se assustou com a voz rouca e a clarividência do homem.

- Não encontrará nenhuma lâmpada mágica. Já deixaram de ser produzidas há algumas eras. Os gênios arquitetaram uma grande rebelião e fugiram para os mundos em que a magia é livre.

- Como sabia que eu queria uma lâmpada?

- Eu sou cigano, se esqueceu? Nós temos o dom da vidência. Nos foi dado em troca de nossa terra. Viajamos e não podemos criar raízes. E essa é a nossa sina e nossa alegria - sorriu o velho que já não parecia mais tão assustador.

- E você já conheceu um gênio?

- Mais do que isso. Já tive uma lâmpada mágica!

- E quais foram os seus pedidos? - Perguntou Amélia com as mãozinhas na boca e as pernas inquietas.

- Olhe, eu nem me lembro. Faz tanto tempo que a minha memória me trai. Devo ter pedido coisas que um tolo como qualquer outro pede. Riquezas, vida eterna... Mas, isso não importa mais. Trouxe um presente para você, pois sabia que a encontraria por aqui. Conheço-a de muito antes do seu nascimento nessa era.

O velho tirou um pêndulo de cristal de seu bolso e colocou entre os dedinhos da jovem Meméia.

- O que é isso?

- É um pêndulo mágico.

- Mas, o que ele faz?

- Isso já é outra coisa. Como eu disse, sou velho e minha memória não é mais a mesma. Só me lembro que o trouxe e que o deveria lhe entregar. Mas o motivo... o motivo... desse tão pouco me recordo. Mas o guarde com carinho, porque um pêndulo mágico não é qualquer coisa. Magia é algo tão raro em nosso mundo. São poucos corações que são capazes de utilizá-la. Isso! - exclamou o velho em um pulinho - essa é a razão de eu lho dar.

- Como assim?

- Não me pressione, agora eu preciso partir. Vá e se lembre que esse foi um presente do velho Melquíades.

No alvorecer não havia mais adivinhos, ilusionistas e comerciantes fantásticos na cidade. Sobraram apenas os vestígios e a saudade daquelas pessoas.



Eder de A. Benevides

quinta-feira, 3 de maio de 2012

A Bomba do Amor - Parte 1

Gente, resolvi escrever um conto um pouquinho mais comprido, no estilo de uma novela. Tive essa idéia de como seria construir uma bomba do amor, de como isso seria interessante e comecei a desenvolver um texto. Não o terminei, vou escrever por partes mesmo e prevejo, no máximo, umas 5 partes. Um bom jeito de me manter por aqui e voltar à velha forma. Optei por uma prosa bem infantil mesmo, até porque infância é uma de minhas temáticas preferidas e nunca escrevi prosas nesse estilo, apenas poesias. Enfim, espero que gostem. Se não gostarem, valeu a experiência.


A Bomba do Amor.



Lucas tivera uma grande idéia, queria construir uma máquina do amor. Entretanto, não tinha nenhuma pista de por onde começar. Acabara de ler O Pequeno Príncipe que a sua avó lhe dera de presente de aniversário, e chegou a conclusão de que o único remédio para o mundo era a construção de uma máquina com o poder de extinguir a tristeza da vida. Refletiu a tarde inteira, pegou folhas de papel, as canetinhas e começou a esboçar o incrível dispositivo. Seria como uma bomba, um poderoso explosivo cujo raio de eficácia atingiria até os cantos mais escuros da realidade. Sempre fora seu sonho ser um cientista desses bem inteligentes com a capacidade de influenciar gerações, mas, no momento, suas ferramentas máximas eram as canetinhas.

Queria ligar para os amiguinhos, mas eles ririam dele, pois tinha consciência de que a idéia poderia parecer tola. Será que poderia contar com a ajuda de alguém? Mas de quem? Lembrou-se da Vó Meméia e logo pegou a bicicleta e rumou para sua casa. Só a avó o entenderia, sabia que poderia contar com ela. Chegou no portão "Vó! Vó! Vó!" e logo foi entrando. Colocou a bicicleta de baixo da larangeira do jardim e correu para cozinha de onde vinha um incrível cheiro de chocolate. Lá estava a alegre velhinha, com as mãos na colher de pau, escorrendo a calda de chocolate sobre um bonito bolo de cenoura.

- Vó! Eu preciso de sua ajuda!

- Lucas, primeiro me faça um favor, vá na despensa e pegue o saco de nozes para mim.

Pegou o saco e o levou para a experiente confeiteira, que o abriu e jogou as nozes sobre a cobertura do bolo. Lucas correu, e, sem nem mesmo ser requisitado, pegou os pratinhos e as colherzinhas de sobremesa. Vó Meméia cortou dois grandes pedaços, uma para ele e outro para ela.

- Vó, eu quero construir uma máquina do amor!

- E como você pensa em fazer tal façanha?

- Eu não sei! Por isso eu preciso de sua ajuda. Só você pode me ajudar.

- Por que você não faz uma máquina de chocolate? Todo mundo ama chocolate.

- Vó! É sério! Eu quero construir uma máquina que faça as pessoas serem boas e felizes.

A avó compreendera o querer de Lucas. Os dias não estavam fáceis. Alguns meses já se passaram desde que o pai deixara ele e a mãe, sua filha Luiza. Os dias passavam e Luiza não deixava o quarto e a cama. A tristeza de Lucas tornava-se cada dia maior com toda a situação presente.A sucetibilidade da infância tem a vantágem de se transformar em esperança, diferente do pessimismo da maturidade. Meméia colocou as mãos no queixo reflexiva "uhm, uhm, uhm...".

- Mas como você quer que essa máquina seja?

- Como uma bomba!

- E você sabe como uma bomba funciona, Lucas?

- Não.

Foi o "não" mais decepcionado já dito por ele. Não tinha idéia de como uma bomba funcionava. Como dessa forma poderia construir um explosivo da espécie que ele queria? Depois de segundos de perplexidade, de súbito, sorriu. Viu na expressão da avó que alí vinha uma resposta. Ela o contaria como construir a sua grande ivenção, pois era, além de tudo, sua heroína. Vó Meméia sempre tinha resposta para todas as suas dúvidas. Desde bem novinho escutava as estórias que ela o contava, da sua juventude como inventora. Trabalhara em um laboratório secreto de onde sairam os aviões supersônicos, os robôs que se disfarçam de gente porque queriam ser humanos, as naves espaciais e as máquinas do tempo. Uma bomba do amor seria moleza para ela!

- Olha, as bombas de verdade são muito diferentes da bomba que você quer construir. Uma bomba explode por causa da nitroglicerina que existe dentro dela.

- O que é nitroglicerina?

- É uma substância super perigosa, que causa uma grande explosão. A nitroglicerina é tão perigosa que qualquer impactozinho pode fazê-la colocar tudo para os ares.

- Mas vó, não dá para construir a bomba que eu quero desse jeito, não é?

- Claro que não! Nós temos que achar uma substância tão perigosa quanto, mas que, em vez de destruir, espalhe o bem. Mas tem um porém, essa substância é muito particular, ela vem do fundo do coração das pessoas. E só pode ser extraída do próprio sentimento.

- Como assim?

- Oras, como a água vem da fonte, o amor vem do coração, no caso, a nitroglicerina do amor. Espere um minutinho.

Meméia foi até o quarto, abriu a gaveta de sua cômoda e de lá tirou um objeto. Levantou-o e o fitou por alguns segundos. Aquilo parecia ter importância em sua longa vida. Não fora ontem que sonhara pela primeira vez. Era criança igual o neto quando fez de seus sonhos o caminho de toda sua existência. Sonhar é um júbilo inigualável e sempre julgou traição agir em contraste com os seus ímpetos oníricos. Lucas era um menino sensível igual a menina que já fora. É assim que homens e mulheres se tornam diferenciais nesse mundo, através do não desperdício de suas sensíveis peculiaridades. Lucas construiria a sua bomba do amor.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Peso.

As brumas se arrastavam sobre a pele das águas do rio Saint Laurent quando Guilherme apagou o cigarro no banco em que sentava. Pecara e a salmora que escorria de seu espírito lesado não cessava de verter. Pudera ele compreender que o seu ato não fora em nome de sua paixão doente. A guerra declarada em seu âmago resultara na queda de sua Troia, e o falso cavalo era, na verdade, um coração dissimulado. Seu ato fora reflexo de sua própria psicose. Levantou-se, ergueu os olhos e mirou aquele céu cinza que prenunciava o império do frio. Virou-se e seguiu em direção contrária do Vieux Porte. Suas mão estavam geladas dentro dos bolsos de seu blazer cinza de lã fria. Expirava a cada passo que dava; Perna direita,vapor, perna esquerda, vapor. Ouvia sua respiração com o mesmo pesar de ouvir um longo sermão. Era, afinal, tão jovem "como pude? como pude?- indagava-se desesperançoso. As ruas do centro histórico de Montreal estavam vazias, fazia frio e os poucos transeuntes apertavam o passo para logo chegarem aos seus destinos. A solidão daquele dia contaminara até os esquilos e pombos, agora ausentes. Sobre o chão da Place Jacques Cartier se lembrou dos arranjos floridos que a adornavam na primavera, das centenas de turistas e do charme de Louise que o puxava para assistir aos artistas de rua que alí apresentavam a sua humanidade. Louise fora tão doce nesse tempo, o seu sorriso mostrava-se perene e real. A realidade também pode ser abstrata e fugaz. Mirou o Montreal City Hall e estremeceu, lá, bem em frente, estava Loise, o observando inexpressiva.

 "Louise, meu amor foi mordaz como foi a sua indiferença por mim!"

 Tentou gritar, mas a voz trancara-se em sua garganta. Pegou a St. Paul e correu para longe. Desesperou-se, ficara louco. Os seus olhos o enganavam? Não podia ser Louise, não queria que fosse Louise. Enveredou-se pelas estreitas ruas que cruzavam o seu caminho e fez de sua alma um labirinto de fuga. Para onde iria? Não sabia. Não havia para onde ir. Com o coração acelerado sentia que a energia deixava as pernas e o ar os pulmões. Parou, apoiou-se sobre os joelhos para pegar ar e viu o chão desfocado. Tirou outro cigarro do bolso, ergueu-se e acendeu o esqueiro. Por detrás da chama a silhueta funesta se materializou. Agora, em sua frente ela estava. Percebeu que fugir era inútil. Livrou-se do Malboro, deu alguns passos até que ficassem face a face.Olhou em seus olhos e nada disse. Inexpressiva, continuava inexpressiva. A voz ainda não o obedecia. Ficou ali, por longos segundos até que viessem os soluços e o profundo desespero. Tocou a inexpressão daquele rosto, passou as mãos para os ombros e os apertou com força como se quisesse prendê-la a ele. Caiu de quatro, o gosto das lágrimas era amargo como a fatalidade do destino. Procurava os sapatos para se agarrar as suas pernas e então percebeu que ela sumira. O deixara os degraus da Notre Dame . Deveria se livrar daquela dor, expurgar os pecados, o pecado, e até mesmo o pecado original. Adentrou. O templo era hostil para sua alma, o altar o remetia à melancolia extrema da própria morte. Entrara na corte dos desamparados, e, alí, seria julgado pelos seus crimes. O juiz, Deus? Existiria um Deus julgador? Será que era digno do julgamento de Deus? Não deveria estar alí blasfemando um território divino. Sempre fora cético, e agora? Agora estava perdido, sem chão e sem concepções. Era o próprio Atlas, e o seu mundo era deveras pesado para que tivesse quaisquer certezas. Loise, no altar, era a sua Maria Madalena não salva, condenada pelo seu ódio.

 - Quando vi em seus olhos o abandono não pude mais lidar com o mundo. Agora me massacra com essa indiferença infernal.

 Louise desceu ao último banco, aproximou-se de Guilherme, pegou suas mão e as encostou em seu colo. Guilerme entendeu tudo. Suas mãos foram guiadas com ternura até o bolso interno de seu blazer.

- Então é isso que espera de mim.

 Um revolver calibre 36 prateado cintilou nos fundos da nave. Com resto de consternação passou por Louise e cruzou o corredor entre as cadeiras para que ficasse frente a frente com a imagem do Inri crucificado. Louise o abraçou por trás. O pretérito- e efêmero - sorriso perene era mais importante agora. Soube que o seu amor não foi mais forte do que a traição, a indiferença, o desterro, mas que, agora, deveria enfrentá-lo. Absorto na incipiente tranquilidade de sua alma, colocou o cano no temporal e rezou, depois de muitos anos, o Pai Nosso.


 Eder de A. Benevides