quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

II. A Mensagem



“Inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira”, com um pé atrás do outro no chão e o controle da respiração na mente, Janaína seguia firme em sua corrida matinal na orla da praia de Camburi.  Praticava um tal de mindfullness, que aprendera em uma palestra motivacional,  o qual conjugava com os exercícios físicos devido a algum artigo de internet que lera  “exercício físico é ótimo para ansiedade”. Pensava na endorfina, serotonina, sei-lá-que-nina que precisava produzir para equilibrar a química do cérebro “ansiedade é química”. Depois de três quilômetros corridos, Janaína sentou-se no banco de frente à barraquinha de água de coco e fez sinal ao moço com um facão enferrujado na mão, “água de coco ajuda no detox”. O celular vibrou em seu braço. Era uma mensagem do chefe.

“Janaína, marquei uma reunião contigo hoje às 15:00. Desmarque seus compromissos.”

Indagou sobre o motivo da reunião e recebeu como resposta um "não posso conversar agora, nos vemos mais tarde". Janaína, que até o momento que pedira a água de coco não suava, transformou-se em uma cachoeira humana. “Que diabos de reunião é essa?”. A boca estava um deserto e o moço ainda preparava o coco dos que estavam na frente da fila. Desistiu da água de coco e correu para casa tomar um banho e se teletransportar, se possível fosse, para o trabalho. Banhou-se, enxugou-se e bochechou com o enxaguante bucal enquanto vestia a roupa, penteava os cabelos e calçava o scarpin preto.

No trânsito, sentiu a ira de Murphy ao verificar que, para ela, todos os semáforos indicavam o vermelho. “Será que havia algo de errado no contrato que fechamos semana passada??”. Buzinou meia dúzia de vezes para uma picape que se recusava a se mover após o sinal verde. “Puta merda, com certeza o cliente deve ter levado um baita prejuízo, mas como eu poderia prever?”. O tráfego na Avenida Fernando Ferrari estava irreal para as 7:15 da manhã, precisava cortar pela orla. “Ah, mas eu tinha que ter previsto, é minha responsabilidade avaliar esses riscos, que merda!”.  Avaliou mal os riscos do trânsito ao bater na traseira de um Gol de placa F-U-C-K-Y-O-U que freou repentinamente com o sinal vermelho do semáforo. “Só me faltava essa, vou chegar atrasada e com certeza me demitem”. Entregou um cartão seu ao condutor do Gol, pegou o dele, ignorou o para-choque amassado e chispou para o escritório “not today, Satan!”.

Luís, colega de trabalho de Janaína, havia acabado de sair de uma consulta no oftalmologista em que havia sido pingado em seus olhos um colírio dilatador de pupila. Estava sensível à luminosidade e, por conta disso, usava óculos escuros enquanto digitava e mirava o monitor. Momentos antes de Janaína chegar, a gerente do setor havia chamado a atenção de Luís, pedindo a ele que não usasse o seu Ray Ban Wayfarer durante a reunião com os clientes que começaria a qualquer momento.

Janaína, ao chegar -atrasada- ao escritório, encontrou com o colega fotossensível no corredor, no momento em que esse se dirigia à sala de reuniões.

- Bom dia, Luís! Animado para fechar o negócio?

Luís, vagamente tonto e sem conseguir olhar para cima por conta da luminosidade, respondeu apressadamente a saudação e sorriu sem graça, sempre mirando o carpete azulado ornado com manchas de café.  “O que houve com ele? Será que já sabe? Todos já devem saber da burrada que fiz”. Janaína estalou todos os dedos das mãos no percurso que levava à sua mesa. “Pior, devem ter oferecido a ele a minha vaga! Aquele... sempre soube que queria me ferrar”. Por alguns minutos Janaína amaldiçoou toda a ancestralidade de descendência de Luís enquanto planejava um número considerável de formas de se vingar.

Ainda faltavam sete horas para a reunião. Janaína, então, se dirigiu a sala do chefe de forma a adiantar o seu destino trágico. Frustrada. Ele estava em uma reunião em São Paulo e o avião só aterrizaria no aeroporto de Vitória às 14:20. Tentou, mais uma vez, sondar discretamente no whatsapp o assunto da reunião. Entretanto, não obteve resposta, mesmo após verificar que ambos os sinais estavam azuis. Teria que esperar até às 15:00.

Durante o dia, Janaína não se moveu de sua mesa e sequer saiu para almoçar. Poderia estar adiantando todo o serviço pendente, mas resolveu entrar em sites de busca de emprego, intercalando a busca com repentinas idas ao banheiro, local onde chorava, assoava o nariz, lavava o rosto e iniciava uma crise de riso. Tudo nessa exata ordem, todas as cinco vezes em que o fez durante o dia.

Iria embora sem conversar com o chefe. Colocaria a sua carta de demissão sobre a grande mesa de mogno do patrão e partiria sem se sujeitar àquele papel. Hesitou. Talvez houvesse alguma forma de concertar o erro: cancelar o negócio, ressarcir o cliente com o próprio dinheiro, fazer horas extras de graça... Alguma coisa poderia ser feita. Inútil. Sabia, no fundo, que estava tudo perdido. A sua carreira seria mais um exemplo de um meteorito decadente. Era o fim da linha. THE END OF THE LINE. “Não, vou encarar e sair com dignidade, sou uma profissional!”. Optou por aguardar as temidas quinze horas.

Lá estava no relógio. 15:00. Ouviu a porta do elevador abrir à distância e a voz grave e alta do chefe ecoar pelo corredor. A perna direita de Janaína parecia uma britadeira que romperia o assoalho a qualquer instante.

Luís, agora com a visão normalizada e com um sorriso enorme no rosto de quem fechou um bom negócio, caminhou lentamente em direção a Janaína e a informou de que o chefe a aguardava. “Traíra, quero ver até onde vai esse sorriso”. Levantou-se, suspirou o mais fundo que podia e se dirigiu ao matadouro.

- Janaína, entre logo, não temos tempo a perder.

“É assim? Dez anos dando o meu sangue e quer tudo limpo e rápido?”. Sentou-se de frente ao chefe que jazia as mãos cerradas sobre a mesa. Olharam-se nos olhos por quase um minuto sem proferirem uma única palavra. Janaína se encontrava a beira de um infarto e o rosto de seu chefe era indecifrável.

- Pois bem, já tem uma década que você está aqui conosco e, nesse tempo, tem sido um prazer tê-la como colaboradora. Ocorre que as coisas mudam. Janaína, não queremos você mais como colaboradora.

 “Como eu vou fazer para pagar as prestações de meu apartamento? Vão me despejar, serei a mais nova sem-teto da balada”.

- Na verdade....

"Enfia logo essa faca em meu peito, maldito"

- ... Avaliamos a situação financeira da empresa e a produtividade dos colaboradores e...

"A minha mãe terá certeza do fracasso que sou... o meu pai vai morrer de desgosto..."

- Bem...o negócio foi um sucesso, acho que já está na hora de colocarmos o seu nome na nossa placa. 

- Oi??

- Parabéns, sócia!

Janaína foi e voltou do inferno por pelo menos trinta vezes antes de compreender o que acabara de acontecer. Inclusive, enquanto o chefe falava, pensava em uma forma indolor de suicídio. As palavras chegavam ao seu ouvido e ricocheteavam no espaço sideral para depois de alguns anos luz serem processadas em sua mente. O chefe franziu a testa, pois um silencio estarrecedor havia sido instaurado e séculos se passaram sem que Janaína esboçasse qualquer reação. Atônita, a única coisa que foi capaz de fazer foi proferir um silencioso obrigado e sair cambaleando da sala da chefia.

Diante do acontecido, precisava ir ao toalete se recompor. Olhou-se no espelho e viu todo o seu mundo se erguer novamente. O coração continuava acelerado, mas era de alívio.  Teve outra crise de riso, chorou e riu novamente. Preparou-se para sair triunfante quando o celular tocou mais uma vez. Era uma mensagem de seu namorado.

“Precisamos conversar”



Eder de A. Benevides.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

I - Três da Madrugada




Três da madrugada e a fina película que separa o mundo dos sonhos do nosso se rompeu. Dionísio, pela terceira madrugada seguida, acendeu um Luck Strike mentolado e observou de sua janela os edifícios fracamente iluminados pela luz amarela dos postes.  Sentia pesadas correntes de aço envolvendo e pressionando as suas costelas. Pela terceira madrugada seguida não foi capaz de abrandar o peso das correntes. Precisava conviver com elas, pois haviam sido presas ao seu torço há muito tempo. É bem verdade que, por breves momentos, seja capaz de se esquecer de sua existência. “Você precisa abstrair dessa bobajada toda”, diziam todos. Por muito tempo se empenhou no exercício de abstração e abstrair se tornou um verbo cotidiano. O Luck Strike serve, certamente, como forma de abstração. Enquanto sente o prazer da nicotina relaxando os seus músculos, as correntes cedem momentaneamente, para depois voltarem a sufocar. Estava acostumado a ideia de que nunca se acostumaria. Talvez devesse ler um livro, assistir um filme, ou achar algum ser insone no messenger para papear, mas faltava-lhe o ímpeto. Alias, o ímpeto lhe faz falta, e como faz. Pela manhã teria que entregar dois relatórios, ambos não finalizados. Poderia muito bem concluí-los naquele momento, na casa das três da matina. Faltava-lhe ímpeto. Ascendeu outro Luck Strike mentolado, pois era necessário abstrair mais. Quando criança não fora capaz de prever o homem fraco que se tornaria. Era uma criança promissora e com sonhos grandes. Uma noção de inferno real seria o confronto diário com as suas versões pretéritas desviando os seus olhares decepcionados. Sentiu vergonha e foi tomado pela mais pontiaguda dor, localizada no vértice de sua alma. A luz amarela esvanecente, que cobria o concreto da rua e dos edifícios, se confundia com o seu próprio espírito. Junto à madrugada se camuflava com o que havia de fosco e lúgubre. Em determinado momento, entre a metade do segundo cigarro e o seu fim, surgiu de seu estômago algum ímpeto. Com um direcionamento específico. Talvez, lá fora, poderia se juntar às demais criaturas da noite munidas de igual ímpeto repentino. Vestiu um pulôver carmim e adentrou a cidade erma. Errou por alguns quarteirões até encontrar, sob uma hibisqueira, um cão taciturno que caminhava de um lado ao outro. Ao perceber a sua presença, o cão cessou a andança e o encarou imóvel. Dionísio continuou a caminhar em direção ao cão inerte. Estava sujo, com os pelos ensebados e grudados, havia uma ferida exposta em seu dorso. Carne-viva. A face do bicho carecia de intenções, imprevisível.  A dor pontiaguda latejava a cada passo. A alguns centímetros de distância, abaixou-se e acariciou a criatura, que logo mordeu a sua mão. Dionísio permaneceu imóvel enquanto escorria sangue das mandíbulas cerradas sobre a pele. Aos poucos a mordida cessava, de forma que, em  instantes, o cão passou a se afagar na mão ensanguentada. Por um momento, uma brisa noturna veio para também afagar os seus cabelos. Flores de hibisco verteram e bailaram brevemente no ar. Dionísio foi acometido de uma epifania, a qual seria, brevemente, esquecida, pois as correntes, além de sufocar, roubavam-lhe a memória.