sábado, 20 de fevereiro de 2010

Sofia

Foi mais um dia de boemia, daqueles que se vaga pela noite com o espírito de marujo: guia-se o barco na imensidão do oceano e deixa-se guiar pelas estrelas. Essas eram sim as guias de minhas aventuras, levaram-me direto ao prosaico bar de minhas bebedeiras e noites de glória, porém, dessa vez, não se precederam situações quotidianas. Ocorreu-me um daqueles episódios ludibriantes que acontecem com o intuito de embebedar o âmago e aguçar o prazer pela noite.

Com uma long neck de cerveja barata na mão direita, entrei no recinto e logo encontrei uma mesa com amigos que discutiam sobre cinema e música. Discutiam as peculiaridades de Scorsese, as esquisitices do Tarantino, o novo álbum da Maria Gadu e como Freddie Mercury sempre seria o maior cantor de todos os tempos. Por sinal tocava Bohemian Rhapsody, uma de minhas canções preferidas - sempre ela, doce e nostálgica. Aproveitei o fim de minha cerveja e me dirigi ao balcão, talvez bebesse uma dose de vodca para animar o espírito, mas por algum motivo, provavelmente dor no estômago, peguei outra long neck da mesma cerveja barata. Freddie Mercury ainda cantava, quem sabe por isso, por estar enlaçado em alguns devaneios provenientes da música, fiquei por ali no balcão, apreciando a bebida. Não tardou e ELA estava ao meu lado. Já a conhecia, havia a cumprimentado algumas vezes, mas nunca a reparara da forma que a repararia em seguida.

O nome é Sofia, sim, esse é o nome da peculiar protagonista do balcão de um bar noturno em plena quarta feira. Olhei para o lado, e por educação a cumprimentei. Ela sorriu de forma simpática e voltou o olhar para o barman, chamou-o algumas vezes, mas não foi atendida. Instintivamente gritei Luiz, o barman, e logo ele chegou. Virei para Sofia, indaguei sorrindo qual seria o seu pedido e, sorrindo, ela me respondeu:

- Nossa, obrigada, quase fui embora de mãos vazias. Uhm... Vou querer uma tequila! Ouro, por favor.

Pensei o desastre que seria. Ela aparentava já estar ligeiramente alterada, e uma dose de tequila seria simplesmente catastrófica. Ri comigo e previ o vexame. Dei o pedido ao Luiz e comentei com ela.

- Tequila, pedida perigosa!- ri - Algum motivo especial?

- Vou para Nova York amanhã à noite. Estou me despedindo da cidade, passei minha vida inteira nesse lugar. Acho que merece uma tequila.

- Bom motivo, mas o que vai fazer em Nova York?

- Vou atuar.

- Não sabia que atuava.

- Bem, as pessoas costumam me conhecer por isso, mas o perdôo pela garfe. – risos – Terminei agora o curso de artes cênicas. Sou oficialmente atriz e desempregada.

- Uhm, estar desempregada não é tão ruim assim. Pense em todas as pessoas estressadas que não têm o mínimo de tempo para si, e que no final de suas vidas percebem que na verdade trabalharam bem mais do que fizeram qualquer outra coisa de realmente interessante. - risos - Pelo menos estressada você não está.

- Você está brincando não é? – Deu algumas risadas e, mesmo com o ar lúdico, olhou-me fixo esperando por uma resposta afirmativa. Mas sim, falei aquilo por brincadeira, por mais que eu acredite que as pessoas passem o seu tempo deveras ocupadas em seus ofícios em detrimento de suas vidas, sei que necessitam tirar seu sustento de algum lugar e que alguma coisa de útil em seus quotidianos deve ser feita. Com um sorriso respondi:

- Sim.

- Ufa! Que bom, já estava pensando que diabos você deve fazer para ganhar a vida, se é desses canastrões que mora com a mãe e prega qualquer tipo de filosofia anti-trabalho.

A tequila chegou. Sofia pegou o copinho com a bebida de cima da bandeja, colocou sal na dobra entre o dedo indicador e o polegar, segurou um limão fatiado com os dedos citados e virou o copinho numa única golada; após a virada lambeu o sal e espremeu o limão na boca. Depois de todo o ritual ela respirou fundo, olhou para mim e perguntou:

- Você não mora com a sua mãe né? Porque se morar não tem nada a ver, eu falei só brincando. – Riu.

- Relaxe Sofia, eu moro sozinho num apartamento...

- Nem prega nem uma filosofia anti-trabalho?- riu - Brincadeirinha. Mas sim! As pessoas realmente gastam muito de seu preciso tempo com trabalhos chatos que nem gostam. Por isso atuo, amo isso.

- Mercy! Mas muito bom que ama...

- Trabalha com o que?

- O assunto não era você?

- Você não quer falar? Fale, não deve ser tão ruim assim.

- Marrenta você hein?! Eu sou advogado, trabalho em um escritório no Centro.

- Melhor do que imaginei, pela cerveja em sua mão...

- Eu gosto dessa marca, não tem nada a ver com o valor. - Olhei em seus olhos com um sorriso malicioso - Pelo menos não estou desempregado.

- Isso é golpe baixo! – riu. – E você gosta do seu trabalho?

- Gosto sim, bastante. Às vezes é bem estressante, mas nada como uma cervejinha numa quarta feira à noite, junto a uma surtada, para relaxar.

- Depois eu quem sou marrenta!

- Mas, voltando a você, onde vai atuar em Nova York? Já tem algo certo?

- Vou trabalhar numa companhia de teatro em Manhattan. O pessoal é bom, preparam alguns ótimos espetáculos, é uma oportunidade e tanto.

- Legal mesmo. Promissor! Mas, qual o gênero que você costuma atuar?

- Sei lá! Eu faço de tudo; tragédias, comédias, dramas, o que aparecer. Minha ultima peça foi algo bem clássico, interpretei Lady MacBeth, gostei muito.

- Claro, combina contigo.

- Bobo!

- Agora sério! Shakespeare é o máximo, deve ter sido bem difícil montar a personagem.

- Montar nem tanto, ela já foi interpretada muitas vezes, o perfil de Lady MacBeth já é, vamos dizer, bem delimitado sabe? O difícil mesmo foi dar vitalidade àqueles textos enormes, sem tirar o fato de que é uma tragédia shakespeariana. Lidar com a complexidade da personagem, suas peculiaridades; dar às falas os pequenos gestos que as tornam completas. Assumir uma personagem desse naipe é um desafio e tanto!

- Sim,e deve ser incrível!

- Já atuei em comédias também. Fiz a mulher do padeiro numa adaptação de O Alto da Compadecida do Ariano Suassuna.

- Vi o filme em 2000.

- A peça é diferente do filme, mas o filme foi ótimo! Nunca ri tanto.

- Melhor comédia brasileira.

- Sem sombras de dúvida! O Que foi Matheus Nachtergaele como João Grilo?!

- Muito bom! Ele foi maravilhoso!

Fitei os olhos dessa mulher e senti algo ímpar. Nunca a achara tão linda, por um instante a vi como a criatura mais interessante da Terra: Bonita, olhos azuis magníficos, papo inteligente e humor afiado. Todos esses “achismos” foram parte de um instante de admiração intensa, desses que temos sem compreender o motivo: admiramos por admirar. Talvez ela nem fosse tão bonita, os olhos não tão magníficos e o humor não tão afiado assim. Foi como a admiração que levou Werther a se apaixonar instantaneamente por Carlota. Que fique claro que esse não foi o meu caso, não me apaixonei, mas com certeza um profundo encantamento tocou meu espírito.

Fomos interrompidos da conversa por umas amigas de Sofia, insistiram para que voltasse a mesa com elas. Olhou-me com um sorriso de canto de boca e os olhos fixos nos meus, pensou por um instante e dispensou-as. Continuaríamos conversando por toda a madrugada, todavia, naquele momento, fez-se um silêncio que não passaria até que um dos dois o quebrasse: eu assumi a tarefa.

- Por acaso já fez o teste do sofá?

Sofia riu, balançou a cabeça, ia falar algo, mas não falou, depois me olhou, balançou a cabeça novamente e disse:

-Eu por acaso tenho cara de quem se submete a esse tipo de teste?

- Ainda não me respondeu – falei rindo.

- Não! – Fez cara de ofendida e depois riu - Mas eu conheço muitas pessoas que já.

- Sério? É muito comum? Porque a gente que é de fora do meio artístico sempre ouve falar, mas muito é mentira também. Conhece amigas que já fizeram?

- Para falar a verdade, amigas e amigos! Tem muito diretor filho da puta por ai. O mercado é muito competitivo, muitos atores fazem de tudo para conseguir o que querem, inclusive transar com os diretores.

- Então é verdade, fico imaginando se essas parcerias do cinema não são resultado de testes do sofá. Penélope Cruz e Almodóvar...

- Almodóvar é gay, aqueles dois têm uma química muito forte mesmo, não é sacanagem.

- Mas o Woody Allen e a Scarlet Johansson são suspeitos!

- Eles, o Johnny Deep e o Tim Burton.

Por alguns segundos rimos. Parecia que a química de Almodóvar e Penélope Cruz havia se manifestado em nós também. Estávamos íntimos e nos divertindo um com o outro. A conversa poderia durar uma eternidade, teríamos assunto mesmo assim. Pensei no quão longe aquilo poderia chegar e obtive a triste resposta de que nem sequer chegaria. Ela iria para Nova York no outro dia, aquela noite seria a única de muitas outras que ficariam pendentes.

-Mas se surgisse um papel que você quisesse muito e o único meio para consegui-lo fosse transar com o diretor da peça. Você transaria?

- Não sei! Até hoje não precisei disso, não sei o que faria nessa situação. – Ficou pensativa por uns segundos e tornou a falar. – Talvez, mas só se eu estivesse desesperadamente querendo o papel ou precisando de dinheiro, mas, mesmo assim, pensaria muito. – Parou e deu uma risadinha – Se o diretor fosse bonitinho ajudaria.

- Há! Sabia! Para falar a verdade eu não sou completamente contra o teste do sofá. É uma questão de economia, abrir mão de uma coisa para conseguir outra...

- Abrir mão de sua dignidade por um papel? – Riu.

- Eu não interpreto assim, não acho que seja uma questão de dignidade. Penso que seja mais uma questão de oportunidade, um sexo “de leve” por um papel que você queira muito não vai lhe matar.

- O problema é você transar com um, ficar “famosa” e ter que transar com todos os outros. É uma questão complicada, acho que pode arriscar até a carreira. O sexo se torna mais importante do que o seu talento.

- Mas é muito questão do valor que o sexo tem na sociedade, acho que é exagerado, se não houvesse todo o tabu em torno do ato o teste do sofá não teria tanto problema.

- Mas dignidade não tem a ver só com tabus e tradicionalismos. Acho que envolve o seu bem estar também e ao que você se submete, até onde você se agride e tal.

- Olhando por esse ângulo, há vezes que realmente não vale a pena.

Tirei um maço de Carlton do bolso, peguei um cigarro e o levei a boca quando lembrei que fora proibido fumar em recintos fechados. Sofia me olhou, pegou em minha mão e me puxou em direção a saída.

- Vamos sair, aproveito e lhe acompanho no fumo.

Do lado de fora, em frente à rua deserta já àquele horário, sentamos no meio fio e acendemos os cigarros. Ela acendeu o dela primeiro com o isqueiro, depois pegou o meu e o acendeu com o dela. Fazia um pouco de frio, o sereno da madrugada aproximou nossos corpos. Abracei-a e fique massageando sua mão esquerda.

- Toma, vamos sacrificar alguns dias de nossas vidas agora.

- Pois é, o pior é que alguma outra coisa sempre acaba nos matando antes que os cigarros o façam, por isso prefiro continuar.

Algum silêncio se fez após o comentário e o encarregado de quebrá-lo novamente fui eu.

- Você transaria comigo?

- Você não é diretor.

- Mas eu sou bonitinho.

- E atrevido.

- Pense bem, a sua carreira não está em jogo.

- É impressão minha ou isso foi um flerte?

- Claro que não! – Dei uns segundos – Mas deve ser bem interessante transar com a Lady MacBeth!

- Bobo! Bobo!

- Sofia, você é linda.

Olhei para os lábios daquela linda protagonista dos balcões e quando percebi já a beijava. Sua boca tinha gosto de cigarro, penso que a minha também, porém o gosto que havia por trás da nicotina era o sabor de um prazer inefável. Acredito que se não fosse todo o esforço racional em que me empenhei eu teria me apaixonado, seria idiotisse: iludir-me-ia e perderia noites de sono. Sabe? O destino é cruel, quando nos dá algo de incrível é quase obrigatório que seja efêmero, nesse caso, assaz efêmero. Foi como um gole de água fresca em meio ao deserto: nos dá o prazer da golada porém continuamos sedentos. Sabia que demoraria uma eternidade para encontrar outra pessoa por quem me encantasse tanto! Após o beijo as conversas foram poucas, em menos de uma hora estávamos em meu apartamento. Não contarei os detalhes do que aconteceu pois penso que já sabem o que ocorre nessas situações, contarei somente que fui capaz de amá-la. Se não permiti me apaixonar, pelo menos me permiti que a amasse por apenas uma noite, por apenas uma fração de segundo da minha existência. Digam o que for; que é deveras impossível amar alguém desse jeito, que não passou de um encantamento acompanhado de excitação, o que for. Amei-a e foi sincero. No outro dia pela manhã ela se levantou de minha cama, se vestiu, me deu um beijo nos lábios e se foi. À noite embarcou para Nova York e nunca mais nos vimos.



Eder de A. Benevides

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Sonho Ruim


Sonho Ruim

Acho que me encontrei
Num carnaval diferente
As pistas estavam vazias
E as ruas sem gente
Faltaram as fantasias
Morreu a magia
Daquele samba possante
Que antes não cessava
Por um único instante
A galhofa de outrora
É a nostalgia que chora
No coração da mulata
Cuja profunda tristeza
O âmago do folião arrebata
Apagaram-se os refletores
E nesse fúnebre carnaval
Não restou amores
Tão pouco os louvores
Daquela gente feliz
Que samba por sambar
E com o brilho nos olhos diz
Que o sambódromo é sim
O seu doce doce lar.



Eder de A. Benevides