segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

III. O Cadáver




Já há alguns meses que a decrepitude me vem beijar os lábios, pele e carne. Espero que não sobrem nem os ossos quando eu me acertar com a eternidade. Sempre fui claustrofóbico e agora estou fadado a conviver com os vermes sob o túmulo de mármore e o caixão de madeira maciça. Por aqui não há anjos e, tampouco, demônios. Há sim um cheiro insuportável de formol e terra. Não suporto a imobilidade. Quando vivo, era acometido de terríveis paralisias noturnas. Que ironia a dos senhores do tempo! Aposto que desde que caí imóvel nenhum daqueles miseráveis derramou qualquer lágrima em meu sepultamento. Tinha sim uma dívida de cinco mil contos que deve ter tirado boas lágrimas daquele patife agiota. Bem, tento não me delongar mais nessas reminiscências, mas a eternidade me condenou à agonia eterna. E se aquele patife quiser se ver com meu filho? Não deveria pensar tanto nisso, fiquei mais de ano sem receber uma ligação daquele ingrato. Que pague as minhas dívidas, é o mínimo depois de tanto desgosto. Outro dia Maria veio fazer chacota de mim. Sim, Maria é um verme que mora entre minhas costelas e volta e meia me presta alguma visita. Estava inquieto com a situação de meu apartamento, o qual decorei com as mais diversas relíquias greco-romanas que colecionei pelas minhas viagens. O que será feito do meu Praxitelis conseguido sob os auspícios do mercado negro? Morro outra e outra vez toda vez que me delongo nessas absorções. Mas Maria vem me consolar. Escorrega sobre o meu rosto e sussurra em meus ouvidos “Meu querido, sob a terra nada importa o que se encontra sobre ela”. Virou uma espécie de mantra que reverbera em meus miolos pútridos. Inútil, me ponho a marretar os mais diversos tópicos dia e noite. Estava prestes a terminar a minha tese de anos sobre as ruínas perdidas de lugar nenhum. Fizeram-me o favor de me enterrar junto com os meus manuscritos e provavelmente o mundo jamais conhecerá as minhas incríveis conclusões. Esse pensamento em especial não me abandona. Tivesse eu terminado as conclusões apenas um dia antes. Teria o feito em uma sentada. Mas me pus a adiar, e a cada dia adiado a sentença de meu legado se firmou. De mim, o mundo jamais terá qualquer legado. Talvez achem os meus rascunhos e eu seja citado por algum anencéfalo  incapaz de compreender uma linha do que escrevi. Tornará a minha tese uma aberração. Que horror. Queria os louros, o prestígio e os mimos “Brilhante, brilhante!”. Não terei nada. Apenas Maria. No submundo não há solidão completa. Acabamos por nos afeiçoar pelos seres rastejantes que de nós se alimentam e cuidam. Quando Maria fica muito tempo sem me visitar fico entristecido. Me ponho a pensar no que eu possa ter feito de errado. Será que minha carne fria perdera o sabor? A raiva sucede a dúvida. Passo a odiar Maria por sua ingratidão. Deixei os ingratos da vida para encontrar os da morte. Dou-lhe o que comer e ela resolve desaparecer por dias. Será que ainda habita entre as minhas costelas? Entretanto, quando finalmente me conformo com o seu desaparecimento, lá vem Maria sussurrar em meus ouvidos novamente as palavras doces de um verme.  

- Quanto drama, meu precioso cadáver, procurava apenas por novas entranhas, não há mais nada para se comer entre as costelas.

- Então, quando a carne se acabar,  me deixará para sempre?

Dias se passaram e em todos eles só pude pensar na partida definitiva de Maria. A solidão eterna estava a um par de rins, um baço e, com sorte, um pedaço de fígado de distância. Não sofria mais de insônia, mas, se vivo eu fosse, certamente passaria noites e noites em claro fazendo a contagem regressiva do que ainda restaria de mim para alimentar os vermes.. Antes tivessem me cremado e jogado as cinzas no mar. Não haveria formol, terra e claustrofobia. Dançaria eternamente junto à brisa e seria leve como o ar. Que bom que ainda tenho Maria.

Eder de A. Benevides