terça-feira, 6 de setembro de 2022

Arqueólogo


Contam-me desde criança que sou o que produzo. "O que você vai ser quando crescer?". Respondi, certa vez, que queria mesmo era ser arqueólogo. Queria muito investigar o passado, explorar ruínas antigas e encontrar relíquias sagradas, como a Lara Croft ou o Indiana Jones. Por vezes eu era repreendido. Já tascavam em minha boca o querer ser médico, advogado ou engenheiro. Arqueólogo eu era de alma, mas de corpo eu deveria querer era ganhar dinheiro. O tempo se passou e me tornei advogado, como o predestinado, ou, pelo menos, como queriam que eu o fosse. Mas, confesso, não deixei de ser o arqueólogo que o meu eu criança já era e queria ser quando passava as tardes explorando templos esquecidos com o controle do Playstation nas mãos. Coleciono relíquias preciosas encontradas nas músicas, nos filmes, nos livros, nos vídeo games... O meu sítio arqueológico é o infinito campo do poder criativo humano. Sou intrigado por gente e me perco em seu espectro de complexidades. Mas o mundo é insensível com os arqueólogos. Existe sim uma mão invisível que regula e aprisiona as nossas almas. Por certo período me tornei integralmente o Advogado em detrimento do Arqueólogo. Como poderia ser os dois? Era preciso trabalhar, estudar, fazer pós graduação e correr a inglória corrida invisível que se impõe. O cerco do existir se fechou e eu jamais poderia ser arqueólogo novamente. Pelo menos, era o que eu pensava. Vi esse destino se concretizar entre meus amigos e colegas que, pouco a pouco, compravam os seus carros, financiavam os seus apartamentos e se encontravam cada dia mais fechados em seus sistemas binários do dispensável e indispensável. Indispensável é produzir. Dispensável é todo o resto. As conversas em mesas de bar que transbordavam prazeres e relíquias deram lugar aos casos da profissão, leis e jurisprudências. Ano a ano me imergia em um eu unidimensional e cada dia mais cheio de ausências. Quando colecionamos ausências não podemos nos surpreender com o vazio. No vazio mergulhei e adoeci. Há, em meio às ausências, um poderoso mecanismo de aprisionamento que transforma qualquer ímpeto de dali sair em culpa. A culpa é inebriante como um Gin de pouca qualidade que sacia o vício, mas corrói o fígado. A cada nova culpa colecionava novas ausências que me embriagavam. E quanto mais ébrio, mais difícil ficava de se encontrar o caminho de casa. Entretanto, trôpego, esbarrava em relíquias antigas ali e acolá. E como as dos filmes e dos games, essas relíquias são poderosas! Os encontros acidentais reviveram os meus caminhos, de forma que me agarrava a cada empoeirada relíquia reencontrada. Como lanternas em meio ao breu pude mapear as suas posições. Novamente arqueólogo, reencontrei as coordenadas para mim mesmo. Transformei a advocacia em relíquia, preciosa como as demais. Uma parte de mim, uma peça de meu acervo. Mas o que eu sou, imutavelmente, é essa definição etimologicamente imprecisa, mas para mim acurada, de arqueólogo.

O Mago

 Entender o funcionamento do tecido do universo é tarefa exclusiva dos magos. E há poucos magos por aí. O nascimento de um mago é das coisas mais difíceis de acontecer. Perdoe-me, não se nasce mago, torna-se mago. Mas, nesse processo mutagênico do espírito, se nasce de novo e de novo, muitas e muitas vezes. Tive a sorte de topar com alguns desses seres nessa vida. Normalmente, não se anunciam como tal. Eles te interceptam naqueles momentos em que, de alguma forma, a frequência de seu espírito vibra conjuntamente com a frequência da realidade. Certa vez, costurando as encostas andinas em direção a cidade perdida de Machu Picchu, encontrei um desses seres magistrais. Estávamos em uma Van. De um lado, a encosta pedregosa, ornada por altares, crucifixos e avisos de deslizamentos. Do outro, um enorme penhasco de centenas de metros de profundidade, garganta ancestral do mundo e guardião dos segredos da terra. Estavam cerca de oito pessoas no veículo. A maioria amedrontada pela possibilidade de morte iminente. Havia um trem que levava - por um caminho muito mais seguro - à Águas Calientes, pequeno povoado que se encontra aos pés de Machu Picchu, mas, pela escassez de passagens àquela época do ano, todos ali tomaram o caminho alternativo da Van da morte. Entretanto, a morte não esteve presente. Muito pelo contrário, fomos mergulhados em magia antiga, invisível e imperceptível para quem não a sabe identificar. Em meio a ansiedade que pairava entre nós, dois viajantes puxaram assunto comigo e com meu irmão, com quem eu viajava. Um deles era fotógrafo e carregava consigo uma incrível máquina Rebel, pela qual ele registrou centenas de fotografias de sua viagem pelo coração da América Latina, as quais nos distraíram da tensão de perigo. O outro carregava consigo uma expressão mais hermética, um olhar que se voltava para dentro de si e para além do que se enxergava. Abriu um pequeno caderno de anotações, no qual registrava os seus pensamentos, reflexões e poesias que o acometiam pela sua peregrinação. Eu era um jovem poeta e irremediável sonhador, severamente propenso a mergulhar em devaneios e negar a realidade. O viajante então olhou para mim, como se me conhecesse de outras vidas, e me leu algumas das divagações registradas em seu caderninho. Quando me dei conta, já conversávamos sobre poesia, autores, filmes, existência e metafísica. Mergulhamos, por horas, em meio a magia imanente que presenciávamos. Nessa época eu já escrevia alguns rascunhos de poesia e, como se já o conhecesse a vida inteira, o confidenciei que era desapegado de minhas escritas, que eu não me importava de registrá-las e de, às vezes, perdê-las. Indignou-se abruptamente o homem, que, deixando a faixada de despretensioso viajante, assumiu a postura e entonação do mago que era. Pela janela entrava o vento gélido dos Andes que uivava como uma alcateia inteira e balançava a Van de um lado para o outro em meio a estreita estrada que nos separava do abismo. A voz do viajante ganhou profundidade e, apesar do semblante indignado e postura severa, disse de forma quase doce:

- Você acha correto negligenciar as suas criações? Onde já se viu abandonar sua magia?
As palavras foram poucas, mas atingiram meu cerne e minha inconsciência. Magos sempre dizem muito mais do que parecem dizer. Chegamos sãos e salvos em Águas Calientes, após uma longa caminhada no breu em meio à mata ancestral. Nos separamos logo depois, mas a presença do mago foi indelével em minha vida. Aquela conversa mudou os rumos de meu caminhar. Nos encontramos depois, quase dez anos após o desfiladeiro da morte. O mago me apresentou ao vinho das almas e pude presenciar a mais deslumbrante tempestade de hibiscos que é possível ser vista, mas essa é uma estória para outra hora. Penso e acredito que devemos ser irmãos de outras vidas e, nessa de agora, me interceptou para me revelar segredos da magia antiga e me tornar um pouco mago também. Mas, como já disse, tornar-se mago é das coisas mais difíceis de acontecer.

Se Conhecer

 Nem todo mundo conhece a si mesmo. Não tento ser extra hermético e erudito. “Conhece a ti mesmo” tem sido praticado por mim no próprio tecido da vida. Em uma madrugada insone após a outra. Socrates, Nietzsche, e algum outro alemão ou russo, contribuíram pouco para esse processo. Contribuíram muito mais, quando mais moço, para inflar o ego e ter repertório em mesa de bar. Hoje, busco as minhas respostas em meu próprio microcosmo. Esmiúço cada mecanismo do meu ser à exaustão. Descobri, nessa empreitada, a obsessão. Sou constituído, basicamente, de sonhos e obsessões. Não me leve a mal, não sou maluco, apesar de todos sermos. Sou persistente, observo cada trejeito de cada situação e revisito minhas conclusões muitas, muitas e muitas vezes. Meu humor sempre foi uma tormenta. Vario dezenas de vezes em um mesmo dia. Amo, odeio e amo de novo, mas jamais sou indiferente. Nunca consegui ser indiferente e, por isso, sempre caí em provocações, sempre tomei lados e, na prepotência de achar ter razão, perdi muito mais do que ganhei. Confesso que esse meu jeito faz de mim um homem constantemente exausto. Eu me canso de mim mesmo e, em muitos momentos, não me aguento. Não obstante a tudo isso, afirmo que os dias se tornaram mais e mais agradáveis a medida que me tornei mais íntimo de mim. Se ainda me reservo alguma autoridade a dar conselhos, digo que jamais encontrei autoconhecimento em livros de filosofia ou autoajuda. Encontrei-o, na verdade, na imersão em mim mesmo, na iniciativa corajosa de admitir cada traço de personalidade, virtuoso ou roto. Está no desapego da coerência e no despertar da intuição. Não somos coerentes, somos primordialmente, axiomaticamente, incoerentes. E foi nessa incoerência que me encontrei. Percebi, nas longas conversas travadas junto ao meu âmago, que a alma é selvagem e dona de si própria. Corre como um lobo que atravessa as planícies sob o luar. Indomesticável, padeci iludido sob a falácia do controle pleno. Entender isso é alinhar os chakras e correr junto ao fluxo do universo. Paradoxalmente, ganha-se algum controle sobre a vida quando deixa-se de querer ter total controle sobre si mesmo. Por isso, tenho escolhido, decidido, trabalhado e caminhado junto a mim, em desarmoniosa harmonia. Não sou apenas razão, mas também carne, estômago, sexo e intuição. Afeto e desafeto. Derrotado e obstinado. Nesse passo, cochicho em meu próprio ouvido, me persuadindo ou dissuadindo de meus vários anseios e obsessões. E, quando a noite cai e a insônia bate a porta – uma velha amiga, sento na chão de minha varanda, olho para as estrelas e, como marinheiro, busco nelas e em mim o meu norte.

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

O Mar e a Lua


(Um conto inspirado em recente reencontro com amigos que são Rio e sempre serão)


É um fenômeno humano o apego. Inserimos simbologias cotidianas nos aspectos mais banais de nossas vidas. Um objeto, por exemplo. Um presente, um achado, um mimo... É necessidade dar sentido a nossa vivência por intermédio de rituais, e nesse processo compartimentalizamos o nosso ser em miúdos simbólicos. Foi assim que ele fez. Atribuía a tudo um sentido. Via no singelo o caminho da vida. Havia confeccionado, há muito tempo, uma pulseira junto a um amado. Na intensidade, construiu parte de sua vida enquanto a outra parte se desconstruía. Antagônica e complexa, a vida lhe cobrou, dia após dia, o que estava sendo deixado para trás, talvez a si mesmo. Precisava se resgatar. Para isso, buscou as forças da natureza que lhe davam sentido. Em seu íntimo se identificava com a força da água corrente, como é um rio. Avançava pelo o mundo mutante e implacável. Não obstante, já havia tempo que deixara de ser assim. Sentado sobre a areia, atirou a preciosa pulseira em direção às ondas que quebravam e avançavam com a maré. Ventava muito e o sol já dava lugar à Lua. Seu íntimo se comunicava diretamente com o Mar. Sempre se cumunicara. Há uma entidade para cada coração que bate. No seu caso, era o Mar, de quem era devoto e vassalo. Adorava também a Lua, quem comandava as ondas e as marés - mãe do Mar. Mas, como o rio, só lhe era possível desaguar em um só lugar. Pegou em seu punho esquerdo com a mão direita. Sentia uma falta enorme, uma falta opressora. Era incapaz de se soltar. A leveza lhe era insuportável. Era rio, fluxo contínuo que escavava vales e contornava encostas, mas, contra a sua natureza, se apegou à represa que era aquele objeto. Rio é rio e lago é lago. Antes de jogar a pulseira, não era nem um e nem o outro. Ainda não era nada - em sua concepção. Rogou, então, pela intervenção de seus governantes. Na morada deles estava em casa. O vento gelado lhe agredia a pele, mas não sairia dali tão cedo. Precisava de colo e aconchego. A Lua cheia refletia o mesmo azul do Mar. Mãe e filho estavam ali: complacentes. A relação entre o Mar e a Lua era distinta. A Mãe é a própria mudança. Se desloca pelos céus e transmuta sua forma, cor, tamanho e luminosidade. Nunca e sempre a mesma. O filho é a eterna condição da vida, para onde tudo flui e de onde tudo vem. A sua natureza está na paciente espera, em que observa todos os processos vitais se revelarem em seu próprio tempo. São conforto e desconforto. Horizonte e lar. Ele precisava dos opostos. Precisava saber como regressar e para onde regressar, da mesma forma que precisava saber para onde avançar e como o fazer. A mãe, em um ato de compaixão, pediu que o Vento cessasse. Não era o seu lugar ali. A conversa era entre vassalo, suserano e rainha. Apenas. A pulseira restava sobre a areia, pois as ondas se recusavam a puxá-la de volta. Já lhe foi muito doloroso tirá-la, não poderia tê-la em suas mãos novamente e depois, por mais uma vez, se desfazer dela. Então se impetrou um jogo silencioso. Ele encarava o Mar e o Mar o encarava. Ambos inertes e silenciosos. Barulho era silêncio e silêncio era barulho. O jogo continuou por algumas horas. O Mar é acolhedor, porém misterioso. Não era de dar respostas prontas. Recebia quem dele necessitava, mas preferia deixar cada um encontrar as suas próprias respostas. A Lua, em sua transmutação constante e eterna, já era mais reveladora. É quem ilumina as noites, guia plantios e colheitas e indica os pontos cardinais junto às estrelas. A mãe-rainha se posicionou então entre os dois bem no alto, onde a sua autoridade era inquestionável. Era calma e, de certo modo, também paciente, mas não era impassível, havia de quebrar o silêncio. A pulseira, composta por fitas brancas e azuis brilhantes reluzia forte sobre a areia molhada. Em seu entorno havia conchas, exoesqueletos de estrelas do mar e cacos de vidro, nenhum deles tão dignos do luar. Naquele momento, só se percebia as distâncias entre o Mar e a pulseira, e entre a pulseira e ele. Com alguma coragem que havia juntado em meio ao silêncio, levantou-se. Deu início a uma lenta marcha em direção ao ponto focal. Passinho por passinho, viu as ondas avançarem na mesma proporção. Estava ali em sua frente o objeto contemplado. Lua e Mar, em sua majestade, ordenaram que o Tempo se retirasse. Aquele momento duraria o tempo que tomasse. O tempo fora do tempo. Prepararam para ele um paradoxo particular. A exceção da exceção. Um presente que apenas entidades tão poderosas seriam capazes de dar. Em sua redoma atemporal, contemplou por anos, ou talvez décadas, a pulseira sobre a areia, de frente a onda quebrada que não avançava e nem recuava. Nos primeiros instantes de toda uma era, ainda segurava forte o punho esquerdo. Entretanto, a pressão dos dedos sobre a pele e ossos foi sendo desfeita. Por todo esse (des)tempo sentiu raiva, ressentimento e ódio se transmutarem. Assimilaram-se nele mesmo, como toda ordem de sentimentos tende a fazer. A raiva era ele, o ressentimento era ele e o ódio era ele. Apenas ele poderia não ser mais nada disso. Recebera a benção da Lua e a virtude do Mar. Soltou o punho, abaixou-se e envolveu a pulseira com as duas mãos. Um silencioso estouro eclodiu. A Lua continuou o planejado trajeto celeste, as ondas tocaram os seus pés e o Vento voltou a soprar. Poderia jogar a pulseira novamente, pois o Mar estava a apenas alguns centímetros de distância e as ondas não se negariam mais a buscá-la. Mas, não fazia mais diferença. Mergulhou no Mar e em si mesmo. Era rio como sempre o foi. E rio que é rio é fluxo contínuo que penetra a terra, corta montanhas e encontra o Mar, tome o tempo que for.
Eder de Almeida Benevides