terça-feira, 1 de maio de 2012

Peso.

As brumas se arrastavam sobre a pele das águas do rio Saint Laurent quando Guilherme apagou o cigarro no banco em que sentava. Pecara e a salmora que escorria de seu espírito lesado não cessava de verter. Pudera ele compreender que o seu ato não fora em nome de sua paixão doente. A guerra declarada em seu âmago resultara na queda de sua Troia, e o falso cavalo era, na verdade, um coração dissimulado. Seu ato fora reflexo de sua própria psicose. Levantou-se, ergueu os olhos e mirou aquele céu cinza que prenunciava o império do frio. Virou-se e seguiu em direção contrária do Vieux Porte. Suas mão estavam geladas dentro dos bolsos de seu blazer cinza de lã fria. Expirava a cada passo que dava; Perna direita,vapor, perna esquerda, vapor. Ouvia sua respiração com o mesmo pesar de ouvir um longo sermão. Era, afinal, tão jovem "como pude? como pude?- indagava-se desesperançoso. As ruas do centro histórico de Montreal estavam vazias, fazia frio e os poucos transeuntes apertavam o passo para logo chegarem aos seus destinos. A solidão daquele dia contaminara até os esquilos e pombos, agora ausentes. Sobre o chão da Place Jacques Cartier se lembrou dos arranjos floridos que a adornavam na primavera, das centenas de turistas e do charme de Louise que o puxava para assistir aos artistas de rua que alí apresentavam a sua humanidade. Louise fora tão doce nesse tempo, o seu sorriso mostrava-se perene e real. A realidade também pode ser abstrata e fugaz. Mirou o Montreal City Hall e estremeceu, lá, bem em frente, estava Loise, o observando inexpressiva.

 "Louise, meu amor foi mordaz como foi a sua indiferença por mim!"

 Tentou gritar, mas a voz trancara-se em sua garganta. Pegou a St. Paul e correu para longe. Desesperou-se, ficara louco. Os seus olhos o enganavam? Não podia ser Louise, não queria que fosse Louise. Enveredou-se pelas estreitas ruas que cruzavam o seu caminho e fez de sua alma um labirinto de fuga. Para onde iria? Não sabia. Não havia para onde ir. Com o coração acelerado sentia que a energia deixava as pernas e o ar os pulmões. Parou, apoiou-se sobre os joelhos para pegar ar e viu o chão desfocado. Tirou outro cigarro do bolso, ergueu-se e acendeu o esqueiro. Por detrás da chama a silhueta funesta se materializou. Agora, em sua frente ela estava. Percebeu que fugir era inútil. Livrou-se do Malboro, deu alguns passos até que ficassem face a face.Olhou em seus olhos e nada disse. Inexpressiva, continuava inexpressiva. A voz ainda não o obedecia. Ficou ali, por longos segundos até que viessem os soluços e o profundo desespero. Tocou a inexpressão daquele rosto, passou as mãos para os ombros e os apertou com força como se quisesse prendê-la a ele. Caiu de quatro, o gosto das lágrimas era amargo como a fatalidade do destino. Procurava os sapatos para se agarrar as suas pernas e então percebeu que ela sumira. O deixara os degraus da Notre Dame . Deveria se livrar daquela dor, expurgar os pecados, o pecado, e até mesmo o pecado original. Adentrou. O templo era hostil para sua alma, o altar o remetia à melancolia extrema da própria morte. Entrara na corte dos desamparados, e, alí, seria julgado pelos seus crimes. O juiz, Deus? Existiria um Deus julgador? Será que era digno do julgamento de Deus? Não deveria estar alí blasfemando um território divino. Sempre fora cético, e agora? Agora estava perdido, sem chão e sem concepções. Era o próprio Atlas, e o seu mundo era deveras pesado para que tivesse quaisquer certezas. Loise, no altar, era a sua Maria Madalena não salva, condenada pelo seu ódio.

 - Quando vi em seus olhos o abandono não pude mais lidar com o mundo. Agora me massacra com essa indiferença infernal.

 Louise desceu ao último banco, aproximou-se de Guilherme, pegou suas mão e as encostou em seu colo. Guilerme entendeu tudo. Suas mãos foram guiadas com ternura até o bolso interno de seu blazer.

- Então é isso que espera de mim.

 Um revolver calibre 36 prateado cintilou nos fundos da nave. Com resto de consternação passou por Louise e cruzou o corredor entre as cadeiras para que ficasse frente a frente com a imagem do Inri crucificado. Louise o abraçou por trás. O pretérito- e efêmero - sorriso perene era mais importante agora. Soube que o seu amor não foi mais forte do que a traição, a indiferença, o desterro, mas que, agora, deveria enfrentá-lo. Absorto na incipiente tranquilidade de sua alma, colocou o cano no temporal e rezou, depois de muitos anos, o Pai Nosso.


 Eder de A. Benevides

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