quarta-feira, 5 de outubro de 2022

O Velório da Vó Preta

 

Não existiu nesse mundo amor e felicidade como havia no coração da Vó Preta. Era alegre e contagiante. O dia começava como um estouro em todas as recordações que guardo dela. O dia não era dia, era um evento. Com a casa cheia de filhos, netos, sobrinhos, primos e amigos, não havia espaço para a melancolia em sua morada. Havia apenas espaço para o mais despretensioso e ingênuo amor. E como a Vó Preta amava. Os seus não eram apenas os seus. Os seus eram reis e rainhas, merecedores de todos os luxos e regalias. Os filhos lhe eram o ápice do sucesso. Os netos eram os maiores advogados, fisioterapeutas, engenheiros, empresários e profissionais que já puseram os pés nessa terra. Para ela, não havia quem fosse maior que os seus. Não importavam os defeitos, esses eram pequenos como grãos de areia, completamente desimportantes. A gargalhada da Vó Preta era um luxo por si só, o qual tive em abundância. Esse amor-alegria nunca me faltou. Aliás, não deixava faltar a ninguém. Também não deixava faltar a ninguém comida. Era insuportável para ela não nos ver comer. Fartura havia de sobra. Pães, roscas, bolos, arroz, feijão, ceias, biscoitos amanteigados e todas as outras guloseimas. Como comíamos. E ai de nós se não comêssemos. Vó preta ficava brava. Inconformada. Se estivesse em sua casa, havia de comer, sob pena de ofensa real. Por toda a sua existência, nos contagiou com sua invejável alegria de viver. Mesmo no fim da vida, depois de ter enfrentado males atrás de males, não esmoreceu. Me recordo da última vez que a vi ainda entre nós. Bem magrinha – tendo sido uma mulher robusta toda a vida – e sentada em uma cadeira de rodas, os seus olhos brilhavam mais do que brasa incandescente. O brilho em seus olhos éramos todos nós. Apenas a nossa presença era necessária para fazê-los queimar. As suas limitações físicas não representavam nada, pois a sua alma era eletrizante e gigantesca, de forma que ocupava todos os cômodos da casa e de nossos corações. Inevitavelmente, o corpo cedeu aos anos. Depois de enfrentar tantos problemas de saúde, o corpo não mais respondia aos ímpetos do espírito. O fim de sua jornada no mundo foi chegando amiúde, susto após susto. Meus pais, nesse momento, alugaram uma casa em Fama, pequena cidade no sul de Minas Gerais, onde Vó Preta morou em seus derradeiros momentos. Nos dias que precederam a sua partida, meu pai me relatava por telefone o estado de vovó. Estava debilitada, já não caminhava há muito tempo e mal conseguia se sentar, mesmo com auxílio, para comer. O seu espírito possante já não podia mais convencer o corpo a acompanhá-lo. Havia mesmo de partir sem ele. Viveu noventa e seis anos! No instante em que escrevo, três vezes a minha existência. Não obstante a todos os desafios, algo fabuloso aconteceu na véspera de sua partida. Seus filhos estavam incautos e ansiosos no varandão da casa, em um dia cinzento e desesperançoso. Aguardavam o fim, que já se fazia presente e dominava o local, roubando o ar de todos. Entretanto, Vó Preta não poderia partir sem um último estouro. Sua alma subjugou o corpo enfermo e se lançou para todos os lados. Levantou-se da cama, caminhou em direção a janela e lá se debruçou. Puxou o máximo de ar que seus pulmões eram capazes de reter e começou, aos berros, a espalhar o que melhor sabia espalhar. “Campos, meu filho querido, eu te amo! Edneia, minha joia preciosa, eu te amo! Maria Geralda, minha princesa, eu te amo! Eloísio, filho amado, eu te amo! Antônio, meu caçulinha, eu te amo!”. Vó Preta continuou e pronunciou, com lucidez extrema, o nome de todos os filhos, netos, primos e sobrinhos, posicionando um caloroso “Eu te amo!” como ponto final. Foi desses acontecimentos que desafiam a lógica da natureza. Nada seria capaz de conter o espírito da Vó Preta. Esse desafiaria até Deus, a quem era temente, para poder espalhar o seu amor por uma última vez. Recebi a ligação, era meu pai me informando da partida da vovó. Me organizei e, no mesmo dia, peguei um ônibus para Três Corações e, de lá, peguei outro para Fama. Dormi tão profundamente neste último trajeto que nem me dei conta de que já estava na rodoviária. Acordei com meu irmão me sacudindo, quase que volto para Três Corações. Chegamos na capela onde estava Vó Preta. O caixão ocupava o centro e, ao lado, havia uma fileira de cadeiras, onde estavam sentadas as minhas tias, inconsoláveis. Olhei para Vó Preta - serena e encolhida - e ainda havia muita vida. Estava somente dormindo e, a qualquer hora, acordaria com mais um estouro. O seu amor estava todo presente, irradiando-se sobre o luto. Não poderia haver melancolia em sua morada. Ainda não estavam todos reunidos. Os que não chegaram, ainda chegariam. Era madrugada, pouco a pouco chegavam os demais filhos, netos, bisnetos, primos e amigos. A cada chegada, olhava para Vó Preta e mais vida via nela. Antes serena e encolhida, fui a vendo progressivamente mais corada, alegre e expansiva. Posso jurar que vi nela um sorriso se esboçar. Cada vez mais a sua presença indelével espantava o luto. O choro era inevitável. Todos chorávamos imersos nas mais felizes recordações. Chorávamos e ainda assim havia alegria. Chorávamos e ainda assim havia o eco das gargalhadas da Vó Preta reverberando por todo o local. Com o avançar do dia, chegava gente atrás de gente. A família já estava toda lá, mas os amigos e dezenas de almas tocadas por ela iam se aglomerando para vê-la, esplendorosa, pela última vez. Vovó cresceu no caixão, estava robusta como sempre me lembrei dela ser. Estava radiante. A medida que mais gente chegava, mais radiante ficava. A casa estava cheia, como sempre gostou que estivesse. Os seus, os maiores e melhores do mundo, estavam todos lá e não havia nada que a deixasse mais feliz. O dia estava lindo e o sol revelava todas as cores da vida. Erguemos o caixão e a levamos até a sua lápide. Inundados de recordações, histórias, amor e alegrias, nos despedimos todos “ Vó Preta, nós te amamos!”