domingo, 27 de março de 2011

Apesar de Tudo

Apesar de tudo, ainda sou mais forte do que imaginava. Ontem uma estrela cadente cortou um céu ainda não conhecido por mim; um céu incólume e ornamentado por esperanças suspensas no éter infinito. Ao meu lado a ternura de uma amiga, e acima de nós a conexão com verdades que ainda não se configuram como fatos concretos. Queria escrever aqui: UTOPIA. Eu acredito nessa doce palavra. Primeiro, porque grandes processos vividos pela humanidade foram movimentados por ela, e, segundo, porque é o júbilo de sonhar que nos torna humanos.

Nos últimos meses havia perdido o meu foco e garra, além de ter traído o meu discurso diversas vezes. Entrei em depressão, chorei, não me reconheci e, acima de tudo, senti nojo de mim. As lições de gentileza e alteridade deram lugar ao egoísmo e egocentrismo. A profundidade com que tratava os meus relacionamentos quotidianos foi infectada pela superficialidade e futilidade. Fui, pela primeira vez, igual aqueles de quem sempre tive pena por não poderem enxergar o mundo da forma como enxergo. Mas sabe, como disse anteriormente, apesar de tudo, ainda sou mais forte do que imaginava. O contato com esse meu lado só me fez perceber o quanto podemos ser mais do que somos. E me fez visualizar que não sou tão especial como achava que era, o que me deixou feliz como nunca. Ninguém é superficial, egoísta e fútil em essência. O ser humano é essencialmente profundo. Cria lassos, sente, compreende, condena, toca, muda e modifica o mundo que o circunda. Ser humano é ser capaz de uma infinidade de coisas tanto maravilhosas quanto sórdidas.

Ora, se o ser humano é capaz de cada vez ser mais, significa também que somos capazes de reverter aquilo que nos torna menos. Que somos capazes de subverter essa ordem que nos diz para sermos fúteis, consumistas e gananciosos. Vivemos em um mundo capitalista, que mina recursos naturais e humanos, que reduz a existência do homem ao simples consumo, que faz de nós seres mesquinhos e individualistas. Nesse mundo, apesar de todo o esforço governamental e midiático para nos convencer do contrário, somos produtos; Somos o que vestimos, o que possuímos, o que os padrões de beleza e consumo dizem que somos. Nós, simplesmente, não somos.

Querido leitor, o nosso verdadeiro existir não se resume a isso. Apesar de tudo convergir para que sejamos e ajamos assim, existe uma gama e esforços HUMANOS para nos lembrar do contrário. Movimentos em prol dos Direitos Humanos, da diversidade, da valoração da coletividade; Grupos religiosos – porque ser humano também é ter espiritualidade, crença e fé; Grupos protetores da natureza e das gerações futuras - porque cuidar do meio ambiente é zelar pela dignidade das próximas gerações; Grupos e grupos que lutam pelo o que é mais precioso para a nossa espécie. Existem assim, incontáveis esforços para nos lembrar do que é ser mais. Além de grupos, existem pessoas cuja mundividência está nos olhos e que, de olhar em olhar, ensinam a arte de ser gente. Podemos ser uma dessas pessoas.

Dessa forma, proponho que o leitor reflita sobre o que é realmente importante, sobre como vem levado a vida, e sobre o que pretende fazer de agora em diante. Proponho que seja mais, que mostre que pode ir mais fundo do que imaginava. Lembrem-se: Não somos produtos, somos homens e mulheres com história, sentimentos, afetividade, caráter,talentos e sonhos. Essa é a UTOPIA em que acredito, que percebamos o quanto somos mais belos e interessantes do imaginávamos, e que, com essa ilustração, possamos desenvolver laços de gentileza, alteridade, respeito e compaixão. Como primeiro passo, proponho que lute! Que seja uma daquelas esperanças que vi suspensas no éter infinito. Aquela noite percebi que as verdades para serem verdadeiras não precisam ser necessariamente fatos.


Eder de A. Benevides

domingo, 20 de março de 2011

Na realidade nascera muitos anos antes do dia de seu parto. Agora estava ali, inerte no dinamismo de seus próprios pensamentos. Vira o seu mundo mudar e os júbilos dos anos que se foram perderem a graça com a cadência dos seus suspiros moribundos. As mãos estavam suadas e as pernas inquietas. Foi à cozinha, abriu o armário com a letargia dos hipocondríacos insones, segurou o copo que achava mais bonito e serviu-se com água do filtro. “Água e garganta seca combinam muito bem” pensou ele. Pensou também nas mensagens que recebera mais cedo, mas não quis as ver. Seriam confirmações de uma mentira interesseira que não o interessava mais. Estava cansado da superficialidade e da casualidade daqueles encontros frívolos e sórdidos. Na realidade estava cansado de tudo e, algumas vezes, até de si mesmo. A sua presença perene o incomodava profundamente, queria livrar-se de si e ser qualquer outra coisa nesse universo. Não agüentava mais a própria voz, o hábito horrível de ser artificialmente otimista, a carência patética, o pseudo-intelectualismo (...). Não obstante, vez ou outra, se admirava, achava-se sensível, honrado, inteligente, divertido (...), para ser sincero, ele nunca fora constante em seus pensamentos.

A água descera bem, talvez agora pudesse dormir ou se jogar da sacada de seu prédio como planejara. Escolheu mais uma noite de sono. Deitou-se e dormiu, dormiu por hoje. Imergiu no sonho da sua consciência carregada; num labirinto de fantasmas da sua própria realidade, de seus próprios medos, de suas próprias dúvidas que, meu Deus, eram numerosas e irreversíveis. Pessoas o torturavam com sorrisos maliciosos e comentários perversos. O desespero transava com a perplexidade num ato sujo e sem esperanças. A solidão poderia o salvar, mas, mesmo assim, haveria um grande espelho de cristal para lembrá-lo de si próprio. Não poderia mais contagiar o mundo com a sua ridícula existência e, em um lampejo, disparou o revolver contra a sua cabeça conturbada. Acordou. Os seus miolos ainda estavam no lugar onde deveriam, para o seu alívio e agonia. Já era manhã, uma alvorada instável e sem perspectivas para um crepúsculo.

Para ele, existir era penoso.
A sua vida foi um passo
Um descompasso.
Um lampejo de engodo.
Ocorreu que numa tarde
Sem fé e vontade
Quis dar cabo de si
E morrer bem ali
Na sarjeta de sua expiação
Nas tentativas em vão
De sentir um prazer palpável
De dormir num leito amável.
Sem culpa
Sem dor
Sem ilusão.



Eder de A. Benevides

sábado, 19 de março de 2011

Acho que perdi a mão para escrever. Há tempos que não consigo construir uma prosa descente, e, inevitavelmente, tudo o que escrevo soa artificial. Não sei o que anda acontecendo, mas estou com a funesta impressão de que os meus dias de escritor possam estar contados. A minha sintaxe, aquela da qual me orgulhava de dominar, tornou-se um touro indomável. Não digo a sintaxe impressa nas folhas de uma gramática, pois essa, para dominá-la, basta algumas horas de dedicação. Falo da minha própria sintaxe, aquela intrínseca nas entranhas de cada escritor, que faz uma oração subordinada essencialmente distinta da outra.

Escrever sempre foi fácil para mim, não que eu seja um exímio conhecedor da língua, mas mesmo dentro dos diversos erros de ortografia, conjugação, pontuação e sintaxe, a minha própria sintaxe estava correta e perfeita, digna de uma estrelinha de professora. Agora mal posso manejá-la, preciso escrever com calma, pensar repetidas vezes na estrutura e amiúde ir modificando aqui, ali e acolá. Parece que as letras se rebelaram contra mim; que hastearam bandeiras vermelhas e se insurgiram contra a infraestrutura vigente e a ditadura da minha caneta.

Outro problema que venho enfrentando é a falta de criatividade. Ultimamente não tenho sequer hesitado em cair no senso comum. Cada textinho piegas que PUTAQUEPARIU! Frases prontas, ditados populares, apelos emocionais, acho que estou me tornando algo muito próximo de roteirista de telenovelas. Não sei o que ocorre, mas as inspirações não vêm, formaram junto com as letras um grande complô e agora planejam o meu fim. Os prosaísmos se foram e agora só me restou a alvura das folhas de papel.

Para completar sonhei outro dia que estava nu e deitado em um divã forrado com veludo verde, e, a minha frente, Oswald de Andrade,em preto e branco, me fitava perplexo. De prontidão o revelei a minha impressão:

- Acho que perdi a mão.
- Tem certeza disso?
- A mesma certeza que Aristóteles tinha quando criou a metafísica.
- Metafísica é metafísica, prosa é prosa.
- No meu caso é prosa.
- Quais os sintomas?
- O fim do acordo matrimonial ente a caneta e o papel.
- Mas matrimônio não é tudo. Casa-se, descasa-se, casa-se de novo. Acho que o seu problema é a falta de deglutição.
- O que?
- Coma a minha mão.
- Não quero.
- Então coma a minha perna.
- Nem um pedaço de você me interessa.
- Viu? Esse é o seu problema.


Eder de A. Benevides

quinta-feira, 17 de março de 2011

Marginal

No pub estrelado de paredes negras
O prazer postergado espera à mesa.
Olhos de mármore lapidados
Fitam e já comem a presa.

Camisa amassada
Cabelos desarrumados
Boca vermelha
Duelo de espada.

Reações químicas incessantes;
Amantes incessantes
E composturas defasadas
Naquele breu úmido;
No suor afoito
Solvente do coito.
As respiraçôes são de quem
De quem, de quem??
Já não são nossas
São das vontades ambiciosas
De possuir o ventre alheio
De ficar de joelhos.
De chupar,
De gozar,
De encontrar a língua rubra
Molhada de saliva
Investida de vontade viva
Que não quer que a razão a descubra.
Quer-se trepar ali.
No canto do breu adimensional
Onde não há como ver,
Nem ouvir
Só se discute
A metafísica do prazer:
Ato de amor marginal.


Eder de A. Benevides