terça-feira, 21 de novembro de 2023

Ecos do Eu

  

Ecos do Eu

 

Me basta um acorde solto

Ou uma nota de nostalgia

Que me encubra, me deixe envolto,

Em pretérita e saudosa magia,

Para Imaginar ser cada canção

Um prelúdio ou uma insígnia

Dos momentos que se vão.

Talvez a música, em seu apogeu,

Se transmute em ecos do eu

Ecos meus

Ecos seus

Ecos de companhia e solitude

Que, distantes, se esvanecem

A cada repetição;

A cada pedaço de completude;

A cada lapso de solidão.

Cercado por notas de memória

Me torno puramente emoção,

De forma que cada eco de mim

Reaviva um conto de minha história;

Uma distorção rude e persistente

Das vidas que me habitam;

Delírios de um tempo remanescente

Saudade lisérgica que a alma sente.


Eder de Almeida Benevides

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

O Velório da Vó Preta

 

Não existiu nesse mundo amor e felicidade como havia no coração da Vó Preta. Era alegre e contagiante. O dia começava como um estouro em todas as recordações que guardo dela. O dia não era dia, era um evento. Com a casa cheia de filhos, netos, sobrinhos, primos e amigos, não havia espaço para a melancolia em sua morada. Havia apenas espaço para o mais despretensioso e ingênuo amor. E como a Vó Preta amava. Os seus não eram apenas os seus. Os seus eram reis e rainhas, merecedores de todos os luxos e regalias. Os filhos lhe eram o ápice do sucesso. Os netos eram os maiores advogados, fisioterapeutas, engenheiros, empresários e profissionais que já puseram os pés nessa terra. Para ela, não havia quem fosse maior que os seus. Não importavam os defeitos, esses eram pequenos como grãos de areia, completamente desimportantes. A gargalhada da Vó Preta era um luxo por si só, o qual tive em abundância. Esse amor-alegria nunca me faltou. Aliás, não deixava faltar a ninguém. Também não deixava faltar a ninguém comida. Era insuportável para ela não nos ver comer. Fartura havia de sobra. Pães, roscas, bolos, arroz, feijão, ceias, biscoitos amanteigados e todas as outras guloseimas. Como comíamos. E ai de nós se não comêssemos. Vó preta ficava brava. Inconformada. Se estivesse em sua casa, havia de comer, sob pena de ofensa real. Por toda a sua existência, nos contagiou com sua invejável alegria de viver. Mesmo no fim da vida, depois de ter enfrentado males atrás de males, não esmoreceu. Me recordo da última vez que a vi ainda entre nós. Bem magrinha – tendo sido uma mulher robusta toda a vida – e sentada em uma cadeira de rodas, os seus olhos brilhavam mais do que brasa incandescente. O brilho em seus olhos éramos todos nós. Apenas a nossa presença era necessária para fazê-los queimar. As suas limitações físicas não representavam nada, pois a sua alma era eletrizante e gigantesca, de forma que ocupava todos os cômodos da casa e de nossos corações. Inevitavelmente, o corpo cedeu aos anos. Depois de enfrentar tantos problemas de saúde, o corpo não mais respondia aos ímpetos do espírito. O fim de sua jornada no mundo foi chegando amiúde, susto após susto. Meus pais, nesse momento, alugaram uma casa em Fama, pequena cidade no sul de Minas Gerais, onde Vó Preta morou em seus derradeiros momentos. Nos dias que precederam a sua partida, meu pai me relatava por telefone o estado de vovó. Estava debilitada, já não caminhava há muito tempo e mal conseguia se sentar, mesmo com auxílio, para comer. O seu espírito possante já não podia mais convencer o corpo a acompanhá-lo. Havia mesmo de partir sem ele. Viveu noventa e seis anos! No instante em que escrevo, três vezes a minha existência. Não obstante a todos os desafios, algo fabuloso aconteceu na véspera de sua partida. Seus filhos estavam incautos e ansiosos no varandão da casa, em um dia cinzento e desesperançoso. Aguardavam o fim, que já se fazia presente e dominava o local, roubando o ar de todos. Entretanto, Vó Preta não poderia partir sem um último estouro. Sua alma subjugou o corpo enfermo e se lançou para todos os lados. Levantou-se da cama, caminhou em direção a janela e lá se debruçou. Puxou o máximo de ar que seus pulmões eram capazes de reter e começou, aos berros, a espalhar o que melhor sabia espalhar. “Campos, meu filho querido, eu te amo! Edneia, minha joia preciosa, eu te amo! Maria Geralda, minha princesa, eu te amo! Eloísio, filho amado, eu te amo! Antônio, meu caçulinha, eu te amo!”. Vó Preta continuou e pronunciou, com lucidez extrema, o nome de todos os filhos, netos, primos e sobrinhos, posicionando um caloroso “Eu te amo!” como ponto final. Foi desses acontecimentos que desafiam a lógica da natureza. Nada seria capaz de conter o espírito da Vó Preta. Esse desafiaria até Deus, a quem era temente, para poder espalhar o seu amor por uma última vez. Recebi a ligação, era meu pai me informando da partida da vovó. Me organizei e, no mesmo dia, peguei um ônibus para Três Corações e, de lá, peguei outro para Fama. Dormi tão profundamente neste último trajeto que nem me dei conta de que já estava na rodoviária. Acordei com meu irmão me sacudindo, quase que volto para Três Corações. Chegamos na capela onde estava Vó Preta. O caixão ocupava o centro e, ao lado, havia uma fileira de cadeiras, onde estavam sentadas as minhas tias, inconsoláveis. Olhei para Vó Preta - serena e encolhida - e ainda havia muita vida. Estava somente dormindo e, a qualquer hora, acordaria com mais um estouro. O seu amor estava todo presente, irradiando-se sobre o luto. Não poderia haver melancolia em sua morada. Ainda não estavam todos reunidos. Os que não chegaram, ainda chegariam. Era madrugada, pouco a pouco chegavam os demais filhos, netos, bisnetos, primos e amigos. A cada chegada, olhava para Vó Preta e mais vida via nela. Antes serena e encolhida, fui a vendo progressivamente mais corada, alegre e expansiva. Posso jurar que vi nela um sorriso se esboçar. Cada vez mais a sua presença indelével espantava o luto. O choro era inevitável. Todos chorávamos imersos nas mais felizes recordações. Chorávamos e ainda assim havia alegria. Chorávamos e ainda assim havia o eco das gargalhadas da Vó Preta reverberando por todo o local. Com o avançar do dia, chegava gente atrás de gente. A família já estava toda lá, mas os amigos e dezenas de almas tocadas por ela iam se aglomerando para vê-la, esplendorosa, pela última vez. Vovó cresceu no caixão, estava robusta como sempre me lembrei dela ser. Estava radiante. A medida que mais gente chegava, mais radiante ficava. A casa estava cheia, como sempre gostou que estivesse. Os seus, os maiores e melhores do mundo, estavam todos lá e não havia nada que a deixasse mais feliz. O dia estava lindo e o sol revelava todas as cores da vida. Erguemos o caixão e a levamos até a sua lápide. Inundados de recordações, histórias, amor e alegrias, nos despedimos todos “ Vó Preta, nós te amamos!”

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Arqueólogo


Contam-me desde criança que sou o que produzo. "O que você vai ser quando crescer?". Respondi, certa vez, que queria mesmo era ser arqueólogo. Queria muito investigar o passado, explorar ruínas antigas e encontrar relíquias sagradas, como a Lara Croft ou o Indiana Jones. Por vezes eu era repreendido. Já tascavam em minha boca o querer ser médico, advogado ou engenheiro. Arqueólogo eu era de alma, mas de corpo eu deveria querer era ganhar dinheiro. O tempo se passou e me tornei advogado, como o predestinado, ou, pelo menos, como queriam que eu o fosse. Mas, confesso, não deixei de ser o arqueólogo que o meu eu criança já era e queria ser quando passava as tardes explorando templos esquecidos com o controle do Playstation nas mãos. Coleciono relíquias preciosas encontradas nas músicas, nos filmes, nos livros, nos vídeo games... O meu sítio arqueológico é o infinito campo do poder criativo humano. Sou intrigado por gente e me perco em seu espectro de complexidades. Mas o mundo é insensível com os arqueólogos. Existe sim uma mão invisível que regula e aprisiona as nossas almas. Por certo período me tornei integralmente o Advogado em detrimento do Arqueólogo. Como poderia ser os dois? Era preciso trabalhar, estudar, fazer pós graduação e correr a inglória corrida invisível que se impõe. O cerco do existir se fechou e eu jamais poderia ser arqueólogo novamente. Pelo menos, era o que eu pensava. Vi esse destino se concretizar entre meus amigos e colegas que, pouco a pouco, compravam os seus carros, financiavam os seus apartamentos e se encontravam cada dia mais fechados em seus sistemas binários do dispensável e indispensável. Indispensável é produzir. Dispensável é todo o resto. As conversas em mesas de bar que transbordavam prazeres e relíquias deram lugar aos casos da profissão, leis e jurisprudências. Ano a ano me imergia em um eu unidimensional e cada dia mais cheio de ausências. Quando colecionamos ausências não podemos nos surpreender com o vazio. No vazio mergulhei e adoeci. Há, em meio às ausências, um poderoso mecanismo de aprisionamento que transforma qualquer ímpeto de dali sair em culpa. A culpa é inebriante como um Gin de pouca qualidade que sacia o vício, mas corrói o fígado. A cada nova culpa colecionava novas ausências que me embriagavam. E quanto mais ébrio, mais difícil ficava de se encontrar o caminho de casa. Entretanto, trôpego, esbarrava em relíquias antigas ali e acolá. E como as dos filmes e dos games, essas relíquias são poderosas! Os encontros acidentais reviveram os meus caminhos, de forma que me agarrava a cada empoeirada relíquia reencontrada. Como lanternas em meio ao breu pude mapear as suas posições. Novamente arqueólogo, reencontrei as coordenadas para mim mesmo. Transformei a advocacia em relíquia, preciosa como as demais. Uma parte de mim, uma peça de meu acervo. Mas o que eu sou, imutavelmente, é essa definição etimologicamente imprecisa, mas para mim acurada, de arqueólogo.

O Mago

 Entender o funcionamento do tecido do universo é tarefa exclusiva dos magos. E há poucos magos por aí. O nascimento de um mago é das coisas mais difíceis de acontecer. Perdoe-me, não se nasce mago, torna-se mago. Mas, nesse processo mutagênico do espírito, se nasce de novo e de novo, muitas e muitas vezes. Tive a sorte de topar com alguns desses seres nessa vida. Normalmente, não se anunciam como tal. Eles te interceptam naqueles momentos em que, de alguma forma, a frequência de seu espírito vibra conjuntamente com a frequência da realidade. Certa vez, costurando as encostas andinas em direção a cidade perdida de Machu Picchu, encontrei um desses seres magistrais. Estávamos em uma Van. De um lado, a encosta pedregosa, ornada por altares, crucifixos e avisos de deslizamentos. Do outro, um enorme penhasco de centenas de metros de profundidade, garganta ancestral do mundo e guardião dos segredos da terra. Estavam cerca de oito pessoas no veículo. A maioria amedrontada pela possibilidade de morte iminente. Havia um trem que levava - por um caminho muito mais seguro - à Águas Calientes, pequeno povoado que se encontra aos pés de Machu Picchu, mas, pela escassez de passagens àquela época do ano, todos ali tomaram o caminho alternativo da Van da morte. Entretanto, a morte não esteve presente. Muito pelo contrário, fomos mergulhados em magia antiga, invisível e imperceptível para quem não a sabe identificar. Em meio a ansiedade que pairava entre nós, dois viajantes puxaram assunto comigo e com meu irmão, com quem eu viajava. Um deles era fotógrafo e carregava consigo uma incrível máquina Rebel, pela qual ele registrou centenas de fotografias de sua viagem pelo coração da América Latina, as quais nos distraíram da tensão de perigo. O outro carregava consigo uma expressão mais hermética, um olhar que se voltava para dentro de si e para além do que se enxergava. Abriu um pequeno caderno de anotações, no qual registrava os seus pensamentos, reflexões e poesias que o acometiam pela sua peregrinação. Eu era um jovem poeta e irremediável sonhador, severamente propenso a mergulhar em devaneios e negar a realidade. O viajante então olhou para mim, como se me conhecesse de outras vidas, e me leu algumas das divagações registradas em seu caderninho. Quando me dei conta, já conversávamos sobre poesia, autores, filmes, existência e metafísica. Mergulhamos, por horas, em meio a magia imanente que presenciávamos. Nessa época eu já escrevia alguns rascunhos de poesia e, como se já o conhecesse a vida inteira, o confidenciei que era desapegado de minhas escritas, que eu não me importava de registrá-las e de, às vezes, perdê-las. Indignou-se abruptamente o homem, que, deixando a faixada de despretensioso viajante, assumiu a postura e entonação do mago que era. Pela janela entrava o vento gélido dos Andes que uivava como uma alcateia inteira e balançava a Van de um lado para o outro em meio a estreita estrada que nos separava do abismo. A voz do viajante ganhou profundidade e, apesar do semblante indignado e postura severa, disse de forma quase doce:

- Você acha correto negligenciar as suas criações? Onde já se viu abandonar sua magia?
As palavras foram poucas, mas atingiram meu cerne e minha inconsciência. Magos sempre dizem muito mais do que parecem dizer. Chegamos sãos e salvos em Águas Calientes, após uma longa caminhada no breu em meio à mata ancestral. Nos separamos logo depois, mas a presença do mago foi indelével em minha vida. Aquela conversa mudou os rumos de meu caminhar. Nos encontramos depois, quase dez anos após o desfiladeiro da morte. O mago me apresentou ao vinho das almas e pude presenciar a mais deslumbrante tempestade de hibiscos que é possível ser vista, mas essa é uma estória para outra hora. Penso e acredito que devemos ser irmãos de outras vidas e, nessa de agora, me interceptou para me revelar segredos da magia antiga e me tornar um pouco mago também. Mas, como já disse, tornar-se mago é das coisas mais difíceis de acontecer.

Se Conhecer

 Nem todo mundo conhece a si mesmo. Não tento ser extra hermético e erudito. “Conhece a ti mesmo” tem sido praticado por mim no próprio tecido da vida. Em uma madrugada insone após a outra. Socrates, Nietzsche, e algum outro alemão ou russo, contribuíram pouco para esse processo. Contribuíram muito mais, quando mais moço, para inflar o ego e ter repertório em mesa de bar. Hoje, busco as minhas respostas em meu próprio microcosmo. Esmiúço cada mecanismo do meu ser à exaustão. Descobri, nessa empreitada, a obsessão. Sou constituído, basicamente, de sonhos e obsessões. Não me leve a mal, não sou maluco, apesar de todos sermos. Sou persistente, observo cada trejeito de cada situação e revisito minhas conclusões muitas, muitas e muitas vezes. Meu humor sempre foi uma tormenta. Vario dezenas de vezes em um mesmo dia. Amo, odeio e amo de novo, mas jamais sou indiferente. Nunca consegui ser indiferente e, por isso, sempre caí em provocações, sempre tomei lados e, na prepotência de achar ter razão, perdi muito mais do que ganhei. Confesso que esse meu jeito faz de mim um homem constantemente exausto. Eu me canso de mim mesmo e, em muitos momentos, não me aguento. Não obstante a tudo isso, afirmo que os dias se tornaram mais e mais agradáveis a medida que me tornei mais íntimo de mim. Se ainda me reservo alguma autoridade a dar conselhos, digo que jamais encontrei autoconhecimento em livros de filosofia ou autoajuda. Encontrei-o, na verdade, na imersão em mim mesmo, na iniciativa corajosa de admitir cada traço de personalidade, virtuoso ou roto. Está no desapego da coerência e no despertar da intuição. Não somos coerentes, somos primordialmente, axiomaticamente, incoerentes. E foi nessa incoerência que me encontrei. Percebi, nas longas conversas travadas junto ao meu âmago, que a alma é selvagem e dona de si própria. Corre como um lobo que atravessa as planícies sob o luar. Indomesticável, padeci iludido sob a falácia do controle pleno. Entender isso é alinhar os chakras e correr junto ao fluxo do universo. Paradoxalmente, ganha-se algum controle sobre a vida quando deixa-se de querer ter total controle sobre si mesmo. Por isso, tenho escolhido, decidido, trabalhado e caminhado junto a mim, em desarmoniosa harmonia. Não sou apenas razão, mas também carne, estômago, sexo e intuição. Afeto e desafeto. Derrotado e obstinado. Nesse passo, cochicho em meu próprio ouvido, me persuadindo ou dissuadindo de meus vários anseios e obsessões. E, quando a noite cai e a insônia bate a porta – uma velha amiga, sento na chão de minha varanda, olho para as estrelas e, como marinheiro, busco nelas e em mim o meu norte.