sexta-feira, 2 de setembro de 2022

O Mar e a Lua


(Um conto inspirado em recente reencontro com amigos que são Rio e sempre serão)


É um fenômeno humano o apego. Inserimos simbologias cotidianas nos aspectos mais banais de nossas vidas. Um objeto, por exemplo. Um presente, um achado, um mimo... É necessidade dar sentido a nossa vivência por intermédio de rituais, e nesse processo compartimentalizamos o nosso ser em miúdos simbólicos. Foi assim que ele fez. Atribuía a tudo um sentido. Via no singelo o caminho da vida. Havia confeccionado, há muito tempo, uma pulseira junto a um amado. Na intensidade, construiu parte de sua vida enquanto a outra parte se desconstruía. Antagônica e complexa, a vida lhe cobrou, dia após dia, o que estava sendo deixado para trás, talvez a si mesmo. Precisava se resgatar. Para isso, buscou as forças da natureza que lhe davam sentido. Em seu íntimo se identificava com a força da água corrente, como é um rio. Avançava pelo o mundo mutante e implacável. Não obstante, já havia tempo que deixara de ser assim. Sentado sobre a areia, atirou a preciosa pulseira em direção às ondas que quebravam e avançavam com a maré. Ventava muito e o sol já dava lugar à Lua. Seu íntimo se comunicava diretamente com o Mar. Sempre se cumunicara. Há uma entidade para cada coração que bate. No seu caso, era o Mar, de quem era devoto e vassalo. Adorava também a Lua, quem comandava as ondas e as marés - mãe do Mar. Mas, como o rio, só lhe era possível desaguar em um só lugar. Pegou em seu punho esquerdo com a mão direita. Sentia uma falta enorme, uma falta opressora. Era incapaz de se soltar. A leveza lhe era insuportável. Era rio, fluxo contínuo que escavava vales e contornava encostas, mas, contra a sua natureza, se apegou à represa que era aquele objeto. Rio é rio e lago é lago. Antes de jogar a pulseira, não era nem um e nem o outro. Ainda não era nada - em sua concepção. Rogou, então, pela intervenção de seus governantes. Na morada deles estava em casa. O vento gelado lhe agredia a pele, mas não sairia dali tão cedo. Precisava de colo e aconchego. A Lua cheia refletia o mesmo azul do Mar. Mãe e filho estavam ali: complacentes. A relação entre o Mar e a Lua era distinta. A Mãe é a própria mudança. Se desloca pelos céus e transmuta sua forma, cor, tamanho e luminosidade. Nunca e sempre a mesma. O filho é a eterna condição da vida, para onde tudo flui e de onde tudo vem. A sua natureza está na paciente espera, em que observa todos os processos vitais se revelarem em seu próprio tempo. São conforto e desconforto. Horizonte e lar. Ele precisava dos opostos. Precisava saber como regressar e para onde regressar, da mesma forma que precisava saber para onde avançar e como o fazer. A mãe, em um ato de compaixão, pediu que o Vento cessasse. Não era o seu lugar ali. A conversa era entre vassalo, suserano e rainha. Apenas. A pulseira restava sobre a areia, pois as ondas se recusavam a puxá-la de volta. Já lhe foi muito doloroso tirá-la, não poderia tê-la em suas mãos novamente e depois, por mais uma vez, se desfazer dela. Então se impetrou um jogo silencioso. Ele encarava o Mar e o Mar o encarava. Ambos inertes e silenciosos. Barulho era silêncio e silêncio era barulho. O jogo continuou por algumas horas. O Mar é acolhedor, porém misterioso. Não era de dar respostas prontas. Recebia quem dele necessitava, mas preferia deixar cada um encontrar as suas próprias respostas. A Lua, em sua transmutação constante e eterna, já era mais reveladora. É quem ilumina as noites, guia plantios e colheitas e indica os pontos cardinais junto às estrelas. A mãe-rainha se posicionou então entre os dois bem no alto, onde a sua autoridade era inquestionável. Era calma e, de certo modo, também paciente, mas não era impassível, havia de quebrar o silêncio. A pulseira, composta por fitas brancas e azuis brilhantes reluzia forte sobre a areia molhada. Em seu entorno havia conchas, exoesqueletos de estrelas do mar e cacos de vidro, nenhum deles tão dignos do luar. Naquele momento, só se percebia as distâncias entre o Mar e a pulseira, e entre a pulseira e ele. Com alguma coragem que havia juntado em meio ao silêncio, levantou-se. Deu início a uma lenta marcha em direção ao ponto focal. Passinho por passinho, viu as ondas avançarem na mesma proporção. Estava ali em sua frente o objeto contemplado. Lua e Mar, em sua majestade, ordenaram que o Tempo se retirasse. Aquele momento duraria o tempo que tomasse. O tempo fora do tempo. Prepararam para ele um paradoxo particular. A exceção da exceção. Um presente que apenas entidades tão poderosas seriam capazes de dar. Em sua redoma atemporal, contemplou por anos, ou talvez décadas, a pulseira sobre a areia, de frente a onda quebrada que não avançava e nem recuava. Nos primeiros instantes de toda uma era, ainda segurava forte o punho esquerdo. Entretanto, a pressão dos dedos sobre a pele e ossos foi sendo desfeita. Por todo esse (des)tempo sentiu raiva, ressentimento e ódio se transmutarem. Assimilaram-se nele mesmo, como toda ordem de sentimentos tende a fazer. A raiva era ele, o ressentimento era ele e o ódio era ele. Apenas ele poderia não ser mais nada disso. Recebera a benção da Lua e a virtude do Mar. Soltou o punho, abaixou-se e envolveu a pulseira com as duas mãos. Um silencioso estouro eclodiu. A Lua continuou o planejado trajeto celeste, as ondas tocaram os seus pés e o Vento voltou a soprar. Poderia jogar a pulseira novamente, pois o Mar estava a apenas alguns centímetros de distância e as ondas não se negariam mais a buscá-la. Mas, não fazia mais diferença. Mergulhou no Mar e em si mesmo. Era rio como sempre o foi. E rio que é rio é fluxo contínuo que penetra a terra, corta montanhas e encontra o Mar, tome o tempo que for.
Eder de Almeida Benevides

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