terça-feira, 6 de setembro de 2022
Arqueólogo
O Mago
Entender o funcionamento do tecido do universo é tarefa exclusiva dos magos. E há poucos magos por aí. O nascimento de um mago é das coisas mais difíceis de acontecer. Perdoe-me, não se nasce mago, torna-se mago. Mas, nesse processo mutagênico do espírito, se nasce de novo e de novo, muitas e muitas vezes. Tive a sorte de topar com alguns desses seres nessa vida. Normalmente, não se anunciam como tal. Eles te interceptam naqueles momentos em que, de alguma forma, a frequência de seu espírito vibra conjuntamente com a frequência da realidade. Certa vez, costurando as encostas andinas em direção a cidade perdida de Machu Picchu, encontrei um desses seres magistrais. Estávamos em uma Van. De um lado, a encosta pedregosa, ornada por altares, crucifixos e avisos de deslizamentos. Do outro, um enorme penhasco de centenas de metros de profundidade, garganta ancestral do mundo e guardião dos segredos da terra. Estavam cerca de oito pessoas no veículo. A maioria amedrontada pela possibilidade de morte iminente. Havia um trem que levava - por um caminho muito mais seguro - à Águas Calientes, pequeno povoado que se encontra aos pés de Machu Picchu, mas, pela escassez de passagens àquela época do ano, todos ali tomaram o caminho alternativo da Van da morte. Entretanto, a morte não esteve presente. Muito pelo contrário, fomos mergulhados em magia antiga, invisível e imperceptível para quem não a sabe identificar. Em meio a ansiedade que pairava entre nós, dois viajantes puxaram assunto comigo e com meu irmão, com quem eu viajava. Um deles era fotógrafo e carregava consigo uma incrível máquina Rebel, pela qual ele registrou centenas de fotografias de sua viagem pelo coração da América Latina, as quais nos distraíram da tensão de perigo. O outro carregava consigo uma expressão mais hermética, um olhar que se voltava para dentro de si e para além do que se enxergava. Abriu um pequeno caderno de anotações, no qual registrava os seus pensamentos, reflexões e poesias que o acometiam pela sua peregrinação. Eu era um jovem poeta e irremediável sonhador, severamente propenso a mergulhar em devaneios e negar a realidade. O viajante então olhou para mim, como se me conhecesse de outras vidas, e me leu algumas das divagações registradas em seu caderninho. Quando me dei conta, já conversávamos sobre poesia, autores, filmes, existência e metafísica. Mergulhamos, por horas, em meio a magia imanente que presenciávamos. Nessa época eu já escrevia alguns rascunhos de poesia e, como se já o conhecesse a vida inteira, o confidenciei que era desapegado de minhas escritas, que eu não me importava de registrá-las e de, às vezes, perdê-las. Indignou-se abruptamente o homem, que, deixando a faixada de despretensioso viajante, assumiu a postura e entonação do mago que era. Pela janela entrava o vento gélido dos Andes que uivava como uma alcateia inteira e balançava a Van de um lado para o outro em meio a estreita estrada que nos separava do abismo. A voz do viajante ganhou profundidade e, apesar do semblante indignado e postura severa, disse de forma quase doce:
Se Conhecer
Nem todo mundo conhece a si mesmo. Não tento ser extra hermético e erudito. “Conhece a ti mesmo” tem sido praticado por mim no próprio tecido da vida. Em uma madrugada insone após a outra. Socrates, Nietzsche, e algum outro alemão ou russo, contribuíram pouco para esse processo. Contribuíram muito mais, quando mais moço, para inflar o ego e ter repertório em mesa de bar. Hoje, busco as minhas respostas em meu próprio microcosmo. Esmiúço cada mecanismo do meu ser à exaustão. Descobri, nessa empreitada, a obsessão. Sou constituído, basicamente, de sonhos e obsessões. Não me leve a mal, não sou maluco, apesar de todos sermos. Sou persistente, observo cada trejeito de cada situação e revisito minhas conclusões muitas, muitas e muitas vezes. Meu humor sempre foi uma tormenta. Vario dezenas de vezes em um mesmo dia. Amo, odeio e amo de novo, mas jamais sou indiferente. Nunca consegui ser indiferente e, por isso, sempre caí em provocações, sempre tomei lados e, na prepotência de achar ter razão, perdi muito mais do que ganhei. Confesso que esse meu jeito faz de mim um homem constantemente exausto. Eu me canso de mim mesmo e, em muitos momentos, não me aguento. Não obstante a tudo isso, afirmo que os dias se tornaram mais e mais agradáveis a medida que me tornei mais íntimo de mim. Se ainda me reservo alguma autoridade a dar conselhos, digo que jamais encontrei autoconhecimento em livros de filosofia ou autoajuda. Encontrei-o, na verdade, na imersão em mim mesmo, na iniciativa corajosa de admitir cada traço de personalidade, virtuoso ou roto. Está no desapego da coerência e no despertar da intuição. Não somos coerentes, somos primordialmente, axiomaticamente, incoerentes. E foi nessa incoerência que me encontrei. Percebi, nas longas conversas travadas junto ao meu âmago, que a alma é selvagem e dona de si própria. Corre como um lobo que atravessa as planícies sob o luar. Indomesticável, padeci iludido sob a falácia do controle pleno. Entender isso é alinhar os chakras e correr junto ao fluxo do universo. Paradoxalmente, ganha-se algum controle sobre a vida quando deixa-se de querer ter total controle sobre si mesmo. Por isso, tenho escolhido, decidido, trabalhado e caminhado junto a mim, em desarmoniosa harmonia. Não sou apenas razão, mas também carne, estômago, sexo e intuição. Afeto e desafeto. Derrotado e obstinado. Nesse passo, cochicho em meu próprio ouvido, me persuadindo ou dissuadindo de meus vários anseios e obsessões. E, quando a noite cai e a insônia bate a porta – uma velha amiga, sento na chão de minha varanda, olho para as estrelas e, como marinheiro, busco nelas e em mim o meu norte.