sexta-feira, 15 de abril de 2011

O Outro Platônico

Conhecera-o na insônia confusa desses dias que não sabemos ao certo se era dia ou noite. Aproximou-se de forma abrupta, porém não era a sua forma convencional de agir. Agia com parcimônia e aparente indiferença. Expor-se era algo raríssimo. A rasura do convívio era, simultaneamente, o seu porto seguro e sua gradativa morte. Ninguém tinha a permissão de adentrar os seus domínios e desvendar o seu interior. Concedia esse direito, com muito pesar, naquelas horas em que o ar faltava e o coração precisava fugir da clausura. Criara um mundinho só seu em que viver era basicamente uma série de afazeres pragmáticos. Não podia sentir de verdade, não podia chorar nem suspirar, não podia ir adiante no que o fazia mais falta: viver.

Encontrar alguém que o fizesse quebrar os seus paradigmas era demasiado assustador. Ficara vexado pelas suas próprias revelações que, apesar de não serem vexatórias, para ele significavam uma violação de sua integridade. Permitia que ele se aproximasse em alguns momentos pouco compreendidos por ele, mas, quando se dava conta do que ocorria, o repelia com uma frieza quase que inquebrantável. Combinavam em tantas coisas. Ideologia, literatura, cinema, cozinha e em gostos do quotidiano. Mas eram também diferentes em várias outras. Eram distintos no tino e na forma de guiar a vida. O outro era intenso, aberto e bem resolvido. Ele já era fechado, superficial e cheio de dúvidas das quais preferia não pensar sobre. Fugia de si mesmo e das oportunidades de se encontrar que o foram apresentadas. Sexualidade, afetividade e amor próprio eram coisas que o atormentavam. Dessa forma preferira as ignorar e se concentrar no seu medíocre dia de tarefas mecânicas e pré-determinadas.

As memórias o traiam. As vezes, em que conseguira ser intenso ao lado dele, foram arrebatadoras. Dividiram dias, desses que importam em nossas vidas. Um dia trocaram um olhar arrastado e invasivo que o excitou no ponto em que os seus medos cruzavam com a sua vontade. Outro dia atravessaram a madrugada entre as estórias de um e de outro. O sol e a lua não se distinguiam. A paciência e a alegria do rapaz ao ouvir as suas estórias mais frívolas, os segredos mais bobos, o arrancavam da pele. Sentia o prazer que as suas peculiaridades causavam e se perdia nessa conexão. Um elo fora criado sem o seu consentimento. Sentia-se admirado e querido. Alguém queria conquistá-lo e não estava acostumado com a situação. Tudo o envolvera profundamente, de uma forma que aquele joguete tornou-se uma via pela qual vivia com riscos reduzidos. A cada olhar profundo que trocava, a cada sorriso que devolvia, a cada vez que o tocava ou era tocado por ele, parecia que respirava o ar da liberdade. Fugia assim do seu cárcere quotidianamente. Quando achava que se aproximava demais, usava o seu monumento de gelo para impor o seu limite, podia ser frio e indiferente quando queria. Era covarde, apesar de tudo.

A covardia não o permitiu enxergar aquele rapaz que tanto tinha apreço por ele, enxergava apenas as sensações que eram proporcionadas; Apenas os carinhos, dengos e afeições. O objeto de sua liberdade não era a pessoa. O seu prazer estava naqueles breves momentos de intimidade. Aprazia-se com as oportunidades de descarregar o peso da rotina nas esperanças de quem há tempos estava apaixonado por ele. A covardia converteu-se em crueldade. Viu que o outro sofria; que a cada dia daquela peleja as suas olheiras ficavam mais fundas; que os seus sorrisos se degradavam; que a vontade de concretizar aquele amor já se tornava, amiúde, uma obsessão. Aproveitava-se das fragilidades do romântico. Quando percebia que havia muito tempo que não era procurado, telefonava-o com convites de esperança. Quando o via triste e distante, cumprimentava-o com um afago mais íntimo. Fizera do pobre coitado vítima de seu egoísmo.

Enquanto ele se contentava com aqueles esporádicos momentos de liberdade, o outro os fizera de meio para sobreviver. Viviam de ilusão e de conveniência. Mas aquilo não duraria para sempre, não poderia durar. Foi quando sentiu os lábios daquele pobre rapaz em seus joelhos. De súbito percebeu o que fizera até ali, e que, além disso, teria que se decidir. Com o outro jogado aos seus pés a situação escapara de seu controle. Não podia mais sustentar a farsa que criara/as falsas esperanças que dera. Ou enxergaria, finalmente, aquela doce alma que o queria, ou encerraria tudo e voltaria à caverna escura onde estivera por um bom tempo. Estava confuso e sua consciência pesou, mas já era tarde, não poderia modificar os erros cometidos. Dispensou o sujeito com uma austeridade que beira a total falta de emoção. Porém ficou ali, na saída da caverna, talvez preparado para outra chance que o destino o entregasse. Uma em que viver fosse possível de forma completa. Não queria que ninguém sofresse.


Eder de A. Benevides

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