quinta-feira, 14 de abril de 2011

Era um vilarejo...

Diziam as más línguas que aquele Ricardo era louco, desses de jogar pedra. Ficava trancafiado em casa o dia inteiro a estudar as coisas do mundo. Era casado, porém a sua mulher e filhos moravam em uma casa do outro lado da rua. Não moravam juntos porque Ricardo não conseguia se concentrar com a algazarra dos filhos e as visitas que, volta e meia, ocupavam a sua sala. Preferiu se mudar. Visitava a família diariamente, mas a maior parte to tempo era mesmo dedicada a sua tal de filosofia.

Habitavam em um vilarejo nos confins do Brasil. Sabiam que era Brasil porque um homem com roupas esquisitas fora os visitar com um papo de “senso habitacional”. Não sabiam bem de que diabos se tratava aquilo. Falavam português e, por inimaginável que seja, um português bem falado. Eram descendentes de uma gente desraigada que fora para ali só por ir mesmo e tentar viver ao seu próprio modo. Um dia um menino do vilarejo achara no porão de sua casa –que por sinal era bem antiga- um sem número de livros. Aquela gente também sabia o que eram os livros, pois os seus ancestrais os usaram para ensinar a língua, a arquitetura, as mágicas e a cura, e eles os usavam para ensinar os seus descendentes. Todavia, aqueles livros eram desconhecidos. Livros que falavam em Europa, América, Revolução Francesa, Revolução Industrial. Também havia alguns com autores de nomes impronunciáveis. Adam Smith, Karl Marx, Shakespeare. Os habitantes do vilarejo não se interessaram, para eles nada daquilo importava. Eram histórias de um tempo muito antigo do qual não queriam saber, entretanto Ricardo mostrou interesse.

Os livros tornaram-se os pilares de seu hermetismo. Maria, a sua mulher, resistiu muito no início. Achara que o seu marido enlouquecera, mas, como o amava muito e o achava muito bom, se esforçou ao máximo para ser compreensiva. Ficou atônita quando Ricardo se mudara. Insistiu várias vezes para que voltasse para casa junto a mulher e os filhos que o amavam muito, mas ele a olhava sorrindo, acariciava os seus cabelos e voltava a ler aqueles livros. Os vizinhos já comentavam a mudança, não entendiam bem o que acontecia. Haviam brigado? O amor acabara? Tudo era um mistério. Começaram a questionar o porquê que eles podiam ter duas casas, pois, naquele vilarejo, todas as famílias tinham apenas uma casa, de igual tamanho e qualidades. Mas o prefeito, aquele que administrava o lugar, concedera-o a casa por conta de assuntos relevantes para a comunidade. Novas mágicas e outras coisas poderiam ser descobertas por aquele homem que se dispunha a investigar.

Foi numa festa dos habitantes que todos ficaram atônitos com a “loucura” de Ricardo. Falava em progresso, fábricas e tecnologia. Falava da necessidade de saírem daquele vilarejo e conhecer a “civilização”. Ninguém entendera o que era a tal da civilização. “Nossos ancestrais nos trouxeram para o isolamento, agora precisamos sair dele.” Aquelas palavras soavam vazias e sem sentido para os que ouviam, pois abandonar a sua terra era simplesmente algo inimaginável. Os dias passaram e a fama do louco crescia. Quando começava a falar de suas filosofias as pessoas se afastavam. As crianças que davam atenção as palavras de Ricardo eram rapidamente repelidas pelos pais. Quiseram o tirar de sua casa, porém, com o tempo, perceberam que a sua clausura era o melhor para todos. Só estavam ao seu lado a sua gentil esposa e os tenros filhos.

No dia da visita do homem do Brasil as concepções mudaram de forma radical. O homem estava de terno e gravata – roupas assaz estranhas para eles – e veio numa grande caixa de ferro com rodas em baixo. O frenesi foi geral. Ninguém entendia que artimanha era aquela, que espécie de mágica fazia aquela caixa metálica andar. O homem fizera perguntas estranhas cujas respostas não podiam responder, daí chamaram o louco para conversar com o alienígena. Conversaram por longas horas. Ricardo fizera toda a sorte de perguntas para o homem, que foram, dentro do possível, satisfatoriamente respondidas. Pediu que o forasteiro ficasse, e por três dias o teve como hóspede. Nesse tempo usou de toda a espécie de argumentos para convencer aquela gente de que precisavam do “progresso”. À sombra daquelas novidades convencera os habitantes a trazer a as maravilhas da civilização para ali. No dia da partida do homem, Ricardo fora embora junto, com a promessa de voltar com grandes novidades.

Demorou dois meses para que voltasse, mas, quando voltou, trouxera uma caramanhada de gente junto. Povo que dizia ser da televisão, do governo, das “ONGs”, do Brasil. O vilarejo encheu-se de forasteiros. Todo morador precisou hospedar alguém para que todos pudessem se acomodar. O modo de vida daquela gente era motivo de grande curiosidade dos “do Brasil”. Tinham produção própria, a divisão de tarefas era quase que igualitária entre os gêneros, não conheciam o dinheiro e todos eram absolutamente iguais. Não eram primitivos pois tinham bons conhecimentos de arquitetura e saneamento, eram organizados, dominavam bem a língua portuguesa, além de uma gama de outras coisas. Meses depois aquela comunidade fora chamada de a "Utopia em meio o Brasil" pelos vários meios de comunicação.

O progresso chegara, e com ele os conflitos. Aquela gente começou a disputar a atenção e os objetos trazidos dos visitantes. Aprenderam que as suas casas e os seus quintais eram propriedades suas, e ninguém poderia violá-las. Apesar dos costumes, as aconchegantes casinhas foram se tornando maiores, uma depois da outra, para depois aumentarem de novo. Quando ocorria de uma casa esbarrar no espaço de outras, a confusão era homérica. Queriam casas iguais aquelas das revistas trazidas pelos forasteiros. Não cooperavam mais. Cada um começou a ter a sua própria produção de alimentos, e quando sobrava comida, davam para os que precisavam em troca de objetos trazidos do Brasil. Conheceram a arma de fogo. Não tardou para que as usassem para delimitar aquilo que era seus por “direito”. Os que não tinham armas foram expulsos de suas casas por aqueles que queriam ampliar os seus domínios e obrigados a construir as suas moradias em outros lugares.

Ricardo entristeceu-se de forma inconsolável. Pediu perdão a esposa pelo estrago que causara. Ela acariciava o seu rosto e o apertava contra o peito. O sonho não passava dum pesadelo travestido. "Mas que progresso atroz seria esse?" perguntava-se reiteradamente. Numa noite abraçou a sua família e os implorou para que fossem morar com o seu pai, que era muito respeitado por todos e poderia oferecê-los segurança.Iria embora, estava condenado a um ostracismo imposto pela própria alma. Então deixou os amados em prantos e adentrou a mata densa para nunca mais voltar.

O vilarejo morreu amiúde. Muitos o deixaram para viver como indigentes na “civilização”. Os que ficaram, junto aos seus enormes patrimônios, foram mortos ou expulsos por fazendeiros maiores que tiveram conhecimento de suas existências. O sonho do progresso que Ricardo sustentara se desfragmentou no tempo e espaço. Os livros perderam o seu encanto, e aquela Utopia perdera o seu direito de existir. Penso aqui, com os meus botões, que Ricardo não lera todos os livros que estavam naquele porão, ou então, deu atenção apenas para as coisas bonitas e maravilhosas que aquelas páginas amarelas sustentavam.


Eder de A. Benevides

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