Três da madrugada e a
fina película que separa o mundo dos sonhos do nosso se rompeu. Dionísio, pela
terceira madrugada seguida, acendeu um Luck Strike mentolado e observou de sua
janela os edifícios fracamente iluminados pela luz amarela dos postes. Sentia pesadas correntes de aço envolvendo e
pressionando as suas costelas. Pela terceira madrugada seguida não foi capaz de
abrandar o peso das correntes. Precisava conviver com elas, pois haviam sido
presas ao seu torço há muito tempo. É bem verdade que, por breves momentos, seja
capaz de se esquecer de sua existência. “Você precisa abstrair dessa bobajada
toda”, diziam todos. Por muito tempo se empenhou no exercício de abstração e
abstrair se tornou um verbo cotidiano. O Luck Strike serve, certamente, como
forma de abstração. Enquanto sente o prazer da nicotina relaxando os seus
músculos, as correntes cedem momentaneamente, para depois voltarem a sufocar. Estava
acostumado a ideia de que nunca se acostumaria. Talvez devesse ler um livro,
assistir um filme, ou achar algum ser insone no messenger para papear, mas faltava-lhe o ímpeto. Alias, o ímpeto
lhe faz falta, e como faz. Pela manhã teria que entregar dois relatórios, ambos
não finalizados. Poderia muito bem concluí-los naquele momento, na casa das
três da matina. Faltava-lhe ímpeto. Ascendeu outro Luck Strike mentolado, pois era
necessário abstrair mais. Quando criança não fora capaz de prever o homem fraco
que se tornaria. Era uma criança promissora e com sonhos grandes. Uma noção de
inferno real seria o confronto diário com as suas versões pretéritas desviando
os seus olhares decepcionados. Sentiu vergonha e foi tomado pela mais pontiaguda
dor, localizada no vértice de sua alma. A luz amarela esvanecente, que cobria o
concreto da rua e dos edifícios, se confundia com o seu próprio espírito. Junto
à madrugada se camuflava com o que havia de fosco e lúgubre. Em determinado
momento, entre a metade do segundo cigarro e o seu fim, surgiu de seu estômago
algum ímpeto. Com um direcionamento específico. Talvez, lá fora, poderia se
juntar às demais criaturas da noite munidas de igual ímpeto repentino. Vestiu
um pulôver carmim e adentrou a cidade erma. Errou por alguns quarteirões até
encontrar, sob uma hibisqueira, um cão taciturno que caminhava de um lado ao
outro. Ao perceber a sua presença, o cão cessou a andança e o encarou imóvel. Dionísio continuou a caminhar em direção ao
cão inerte. Estava sujo, com os pelos ensebados e grudados,
havia uma ferida exposta em seu dorso. Carne-viva. A face do bicho carecia de
intenções, imprevisível. A dor
pontiaguda latejava a cada passo. A alguns centímetros de distância, abaixou-se e acariciou a criatura, que logo
mordeu a sua mão. Dionísio permaneceu imóvel enquanto escorria sangue das
mandíbulas cerradas sobre a pele. Aos poucos a mordida cessava, de forma que,
em instantes, o cão passou a se afagar na mão ensanguentada. Por um
momento, uma brisa noturna veio para também afagar os seus cabelos. Flores de
hibisco verteram e bailaram brevemente no ar. Dionísio foi acometido de uma epifania, a qual seria, brevemente, esquecida, pois as correntes, além de
sufocar, roubavam-lhe a memória.
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