quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

I - Três da Madrugada




Três da madrugada e a fina película que separa o mundo dos sonhos do nosso se rompeu. Dionísio, pela terceira madrugada seguida, acendeu um Luck Strike mentolado e observou de sua janela os edifícios fracamente iluminados pela luz amarela dos postes.  Sentia pesadas correntes de aço envolvendo e pressionando as suas costelas. Pela terceira madrugada seguida não foi capaz de abrandar o peso das correntes. Precisava conviver com elas, pois haviam sido presas ao seu torço há muito tempo. É bem verdade que, por breves momentos, seja capaz de se esquecer de sua existência. “Você precisa abstrair dessa bobajada toda”, diziam todos. Por muito tempo se empenhou no exercício de abstração e abstrair se tornou um verbo cotidiano. O Luck Strike serve, certamente, como forma de abstração. Enquanto sente o prazer da nicotina relaxando os seus músculos, as correntes cedem momentaneamente, para depois voltarem a sufocar. Estava acostumado a ideia de que nunca se acostumaria. Talvez devesse ler um livro, assistir um filme, ou achar algum ser insone no messenger para papear, mas faltava-lhe o ímpeto. Alias, o ímpeto lhe faz falta, e como faz. Pela manhã teria que entregar dois relatórios, ambos não finalizados. Poderia muito bem concluí-los naquele momento, na casa das três da matina. Faltava-lhe ímpeto. Ascendeu outro Luck Strike mentolado, pois era necessário abstrair mais. Quando criança não fora capaz de prever o homem fraco que se tornaria. Era uma criança promissora e com sonhos grandes. Uma noção de inferno real seria o confronto diário com as suas versões pretéritas desviando os seus olhares decepcionados. Sentiu vergonha e foi tomado pela mais pontiaguda dor, localizada no vértice de sua alma. A luz amarela esvanecente, que cobria o concreto da rua e dos edifícios, se confundia com o seu próprio espírito. Junto à madrugada se camuflava com o que havia de fosco e lúgubre. Em determinado momento, entre a metade do segundo cigarro e o seu fim, surgiu de seu estômago algum ímpeto. Com um direcionamento específico. Talvez, lá fora, poderia se juntar às demais criaturas da noite munidas de igual ímpeto repentino. Vestiu um pulôver carmim e adentrou a cidade erma. Errou por alguns quarteirões até encontrar, sob uma hibisqueira, um cão taciturno que caminhava de um lado ao outro. Ao perceber a sua presença, o cão cessou a andança e o encarou imóvel. Dionísio continuou a caminhar em direção ao cão inerte. Estava sujo, com os pelos ensebados e grudados, havia uma ferida exposta em seu dorso. Carne-viva. A face do bicho carecia de intenções, imprevisível.  A dor pontiaguda latejava a cada passo. A alguns centímetros de distância, abaixou-se e acariciou a criatura, que logo mordeu a sua mão. Dionísio permaneceu imóvel enquanto escorria sangue das mandíbulas cerradas sobre a pele. Aos poucos a mordida cessava, de forma que, em  instantes, o cão passou a se afagar na mão ensanguentada. Por um momento, uma brisa noturna veio para também afagar os seus cabelos. Flores de hibisco verteram e bailaram brevemente no ar. Dionísio foi acometido de uma epifania, a qual seria, brevemente, esquecida, pois as correntes, além de sufocar, roubavam-lhe a memória.

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