sexta-feira, 5 de abril de 2024

Breve Retificação de uma Fábula


Há um entendimento distorcido sobre a fábula da Formiga e da Cigarra. Normalmente, se compreende a Cigarra como uma bonne vivante irresponsável, alheia às necessidades do futuro e autocentrada em sua cantoria. A Formiga é a formidável trabalhadora que se prepara o ano inteiro para a chegada do inverno e a mesquinha irmã-ser que nega alimento à Cigarra. Em verdade, existe um erro cosmológico nessa leitura, que ignora o papel de cada criatura em seu ecossistema. Até onde se sabe, as cigarras se alimentam das seivas das árvores, que, abundantes, não lhe negarão sustento e nutrição. Outra verdade sobre a cigarra, é que ela passa por uma lenta e dolorosa metamorfose, até atingir o seu auge como soprano das florestas. A cigarra passa por quase toda a sua vida em uma fase imatura subterrânea, angariando ao longo de seu ciclo o espírito necessário para encantar as criaturas de seu habitat. As formigas jamais negariam a cigarra o seu sustento, porque de suas jornadas de vida é produzido substrato para mais vida na mata, pois são polinizadoras, dispersoras de sementes, decompositoras e outras muitas coisas. Do trabalho das formigas, nasce a flora exuberante que alimenta outras milhares de criaturas. A Cigarra é artista nata, arte pronta que brota da natureza. Em seus rituais de perpetuar a vida, reverberam pelo bosque suas notas bucólicas. Sua cantoria faz parte do bioma, o integra e constitui sua própria essência, retira dos ombros das incansáveis e dos incansáveis trabalhadores da mata o peso da rotina ostensiva, imprimindo-lhes na alma o propósito de sua existência, que é tudo integrar e constituir. Esse é o papel dos artistas, trazer à tona do espírito propósito, inspiração e encantamento. A vida é árdua em demasia sem uma dose diária de encantamento, e quando estamos em meio ao bosque e fechamos os olhos, somos inundados pelos sons das cigarras, dos pássaros, dos micos e de todas as outras criaturas que se prestam ao papel de as outras encantar. É estar cercado pela poesia da simples existência, experiência de fazer parte do cosmos - toda a natureza que há e toda a natureza do ser. A Cigarra se prepara a vida inteira para deslumbrar, esforço louvável que, certamente, é apreciado pelas irmãs Formigas.
Eder de Almeida Benevides

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