quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Jornada

 


Em tempos imemoriais, despertei em meio à savana. O sol era cruel, o chão quente como fogo, e minha pele estava coberta de feridas. Meu bando, minha família, estava reduzida a mim. Partiram em sequência. Uns morreram de sede e insolação, outros foram devorados por criaturas famintas, e eu, mesmo sendo o mais frágil do grupo, de alguma forma sobrevivi. Não era capaz de entender o meu luto e minha imensa tristeza; só me sobrara o visceral instinto de sobrevivência. Cambaleei em busca de cada sombra fornecida pelos galhos retorcidos das árvores, todas distantes, separadas pela dureza daquelas terras. Temeroso, me esforçava em fazer o menor barulho possível, não queria ser devorado. Não havia aprendido como caçar e me defender. Eu era fraco, pouco habilidoso com as estacas de pau que colhi dos corpos de meu próprio pai e de minha mãe. Fui sobrevivendo na surdina até o cair da noite, momento em que me vinha um pavor que me acelerava o peito e congelava meus movimentos. Eu estava à mercê de felinos enormes, com olfato e visão noturna que superavam o mais altivo instinto de sobrevivência. Víboras mortais rastejavam pelo chão e tiravam vidas com um único bote. Os sons eram tenebrosos, e eu estava só. Subi, antes do crepúsculo, na árvore mais alta que encontrei, o que não me fornecia segurança real, apenas a ilusão dela. Mas lá fiquei, e, por mais um dia, sobrevivi.

Sentia sede e fome. Meu estômago doía, e a cólica da desnutrição prejudicava os meus sentidos. Comia uma frutinha aqui e acolá, sempre aquelas que eu observava minha mãe colher. Ela conhecia as frutas, as raízes e os fungos que forneciam alguma nutrição sem trazer consigo o abismo da morte. Não era o suficiente; cada dia mais magro e fraco, o meu destino estava selado: morreria sob o sol escaldante como os outros que antes vieram. Deitado e com a visão turva, vi um enorme tatu cavando uma toca. Ele estava distraído e, talvez, já me visse como um cadáver. Estiquei meus braços com cautela em direção à estaca desgastada que estava ao meu lado. Trouxe-a o mais próximo de mim, quase a abraçando. O tatu continuava distraído e, nesse momento, usei o resto de força que tinha. Uma explosão eclodiu dentro do meu ser e me roubou a consciência. Quando caí em mim, o tatu estava abatido, sangrando com a estaca enfiada em seu torso. Nesse mesmo instante, pressenti sombras me cercarem e, com a caça feita, logo segurei uma pedra afiada, rompi a carne do bicho e me afundei em suas entranhas. Bebi seu sangue, comi sua carne e, a cada pedaço devorado, senti a energia voltar ao meu corpo. Fiz tudo com agilidade, pois as sombras dos carniceiros, como mau presságio, se aproximavam. Precisava correr e buscar novo abrigo.

Percorri milhas, bebendo das poucas poças enlameadas e dos cactos que era capaz de partir e sugar de sua polpa. Me alimentei de pequenos herbívoros distraídos e, por sorte, não encontrei o destino de ser presa. Continuei, dia e noite, a me esgueirar entre um perigo e outro. Assisti, amedrontado, bisões enormes serem abatidos por tigres-dente-de-sabre. As cenas de terror eram superadas por outras ainda mais aterrorizantes. Animais, mais preparados, ferozes e fortes do que eu, se tornavam caça, sem que houvesse qualquer clemência de seus caçadores. Minhas feridas se fechavam para depois se abrirem novamente. Em momentos, o meu desejo era me entregar e dar fim àquela busca despropositada. Eu não sabia o que procurar, apenas existia. Menos do que isso, me rastejava entre esperanças ínfimas sem ter qualquer noção para onde marchava.

Aquelas terras áridas não tinham fim. Assim parecia. No entanto, no ocaso da esperança, percebi que o solo rachado se tornava rocha dura. Morros de pedra foram se revelando e o horizonte tomou novos contornos. Em dado momento, me vi sobre um enorme mar de cânions e pude avistar, da beirada do abismo, lá embaixo, distante no sulco dos cânions, mata verde e água. Poderia ter sido mais uma miragem, mas não tinha escolha. Era para lá que minha sobrevivência me guiara. Procurei uma forma de lá chegar; entretanto, da encosta onde me encontrava, não havia descida fácil. O cansaço extremo me proibia de continuar a peregrinação. Estava entre o abismo e os braços da morte. Olhei para baixo e percebi que a descida era acidentada, com margens em que poderia me ancorar e com vegetação que me serviria de escora. A descida era possível, apesar de mortal.

Descer a garganta que separava as bordas rochosas foi um dos desafios mais letais que enfrentei. Escalei, segurando com a força de meu espírito, em cada galho que se projetava das paredes, em cada pedra que em minhas mãos se encaixava. A cada lance de sorte, não despenquei. Minhas mãos e meus pés já estavam dilacerados, de forma que nem dor sentia mais. Marquei cada pedaço da descida com pegadas rubras. Quase próximo ao solo, talvez a uns quinze metros, peguei em falso em uma pedra e caí. Senti o impacto seguido de uma dor lancinante. Meu coração acelerado me furtava o discernimento.

Urrei!

Um urro tão alto que ecoou pelas paredes do estreito por infinitos segundos. Meu braço direito não se mexia, meus ossos estavam partidos, e a dor latejava por todo o meu corpo. Contudo, a adrenalina me levantou e guiou meus passos em direção à potencial miragem. Passinho a passinho, gemido a gemido, encontrei os primeiros arbustos, que logo tornaram-se árvores altas, conectadas por uma rede esplêndida de cipós. Ouvi água corrente. Acelerei minha marcha na busca da fonte da vida. Logo vi um córrego de águas cristalinas e cardumes policromáticos. Mergulhei a minha cabeça e saciei a sede de uma eternidade.

Onde há água e abundância, há caçadores ferozes.

Não sabia disso de uma forma lógica, mas o sabia em minha essência. Não obstante, nada me parecia hostil. Mesmo sob a influência da dor e com todas as limitações que me acometiam, comecei a explorar o oásis. A relva era verde como ainda não tinha visto. Os pássaros assobiavam, micos cantavam, e o vento sacudia as folhas como chocalhos. Por algum motivo, não me sentia em perigo, apesar de estar. Sentei-me sobre uma cama de raízes que se dispuseram a me acolher. Com o baixar da adrenalina, a dor em meu braço ficava mais intensa. Em um ato involuntário, eu o apertava com o braço oposto, e aquilo parecia amenizar a dor. Arranquei, de um arbusto florido ali perto, uma de suas enormes folhas. Envolvi o meu braço com a maior firmeza que pude. Destaquei as fibras fortes de outra folha e as utilizei como corda para amarrar o invólucro que criei. Comi algumas frutas que pude selecionar e me nutri. Dormi sobre as raízes um sono de horas, como não me recordava de tê-lo feito há muitas eras. Ainda era dia quando dormi e, quando acordei, já nascia outro dia. Acordei vivo e revigorado, embora persistisse a dor que imobilizava o meu braço.

Decidi seguir riacho acima, com cautela e plena ciência de minhas limitações. Observava meus pés e sentia cada textura do solo. Serpentes rastejavam próximas aos meus calcanhares sem me picarem. Mais sorte. Era inevitável: o esplendor tomava conta de meu espírito raquítico e o engrandecia. Vi, com olhos de descoberta, o riacho ganhar corpo e suas águas descerem de quedas impossíveis. Como os peixes sobreviviam àquelas quedas? Me indagava. A vegetação rasteira se tornava mais e mais singular, espalhando-se em feixes, hastes e fibras que, feito prismas, reluziam um arco-íris individual. Caminhava, parava e contemplava.

Segui até encontrar algo extraordinário.

Ouvi um grunhido, depois outro e mais outros. Um mais grave, outro suave e, os últimos, doces. Eram grunhidos como os meus. Havia outros. Abaixei-me e aproximei-me sorrateiramente. Abri com a mão esquerda as folhas entre os arbustos e busquei enxergar quem eram esses outros. Avistei-os em uma clareira. Era uma família. Um homem alto, corpulento e altivo. Um brutamontes. Ao seu lado, encontrava-se uma mulher catando-lhe os piolhos e, brincando em seu entorno, duas crianças serelepes. Fiquei quieto; eles não me conheciam. Aquele homem me mataria em dois tempos se ali me visse. Recuei em silêncio, escondido, encoberto pela folhagem.

Por dias, os observei. Presenciei suas brigas, seus hábitos e suas manias. Vi-os fazer amor enquanto as crianças dormiam e fui tomado por sensações e desejos que me inebriavam; igualmente, vi-os cuidar uns dos outros com um carinho e ternura que me eram novos. Sempre à espreita, fiz deles minha família secreta. Senti amor e admiração por eles, de forma que acompanhá-los, mesmo que de longe, se tornou uma obsessão. Pude constatar que o homem era um caçador tenaz e a mulher, uma observadora vívida. Ela identificava os vestígios dos animais que seriam alimento e apontava ao Golias onde e como agir. Da mesma forma, ela saía em busca de frutos, ervas e argila, que utilizava para encobrir os ferimentos dos seus. Ela era carinhosa com seus pequenos, mantinha-os sempre próximos a si e, quando necessário, enfurecia-se, puxando-lhes as orelhas. A cada dia, ensaiava uma nova forma de me apresentar, mas meu medo não me permitia.

Para eles, eu seria uma ameaça, um perigo inaceitável.

Observando-os, memorizei suas rotinas e trajetos. Sabia quando e onde me esconder e, volta e meia, me indagava como não havia sido descoberto por sobreviventes tão perspicazes. Não fui infalível. Descuidado, pisei em um galho perto da clareira onde faziam acampamento. Um estalo seco e breve. A visão da mulher penetrou toda a folhagem que me escondia. Não era possível que ela tivesse me visto. Recuei silenciosamente e retornei ao meu abrigo, certo de que, para ela, eu devia ter sido uma capivara ou um javali incauto. Algumas horas se passaram e o receio deu lugar ao alívio.

Dormindo sobre a mesma raiz que primeiro me acolheu, acordei com uma lança em meu pescoço. O homem me encarava com os olhos arregalados e gestos enfurecidos. Encolhi-me, balancei a cabeça, expressei em cada movimento a minha paz, a minha incapacidade de fazer mal a ele e aos seus. Eu os amava, não sei como, mas eu os amava. O homem segurou meu braço quebrado com a força de Atlas e eu gritei. Depois apanhei, fui espancado, moído, destruído. Com um chute nas costas, o homem me expulsou. Ali eu não ficaria; que procurasse outro lar. Corri desesperado para o mais longe que pude. Ofegante, encolhi-me sobre a relva e chorei. Chorei com minha alma, chorei todas as águas dos córregos que fluíam entre aquela mata. Havia perdido mais uma família. Estava só novamente. Apenas eu, minha vontade visceral de sobreviver e uma humilhação que me cortava o peito.

Humilhado, busquei outro local mais distante. Recolhi-me em minha solidão. O sentimento não me era novo, mas, reiterado, doía como havia doído antes. Catei cada pedaço de mim que ainda restava. Sem ninguém, havia de me tornar melhor, sob pena de perecer perante a lei do mais forte. Com o tempo, trabalhei minhas estacas até se tornarem lanças e afiei minhas pedras até que fossem lâminas. Melhorei como caçador. Meu braço já estava recuperado, meu vigor restaurado e, mesmo assim, só. O instinto de sobrevivência, amiúde, perdia espaço para o desânimo. Não tinha com quem dividir os frutos de meu empenho. Não havia sentido em ser apenas por ser. Incapaz de elaborar o vazio que sentia, apenas continuava a ser.

Algumas luas se passaram quando, em uma tarde, avistei um cão manco, ferido e abatido. Seria o alimento do dia. Porém, ao me preparar para o ataque, o cão me olhou derrotado. Sua condição era a mesma da minha quando despertei em meio à savana selvagem. Aproximou-se e, em mim, buscou aconchego. Não o mataria. Não aquele ser que, naquele gesto, confiou sua vida a mim. Cuidei do animal, alimentei-o e protegi-o até que estivesse saudável. O cuidado se tornou ternura e carinho. Recuperado, o bicho se recusou a me deixar. Despertava, pela manhã, com pequenos animais empilhados ao meu lado. Um presente: nosso café da manhã. Durante o dia, me acompanhava para onde eu fosse e percebi, surpreso comigo mesmo, que eu fazia o mesmo. Depois disso, o cão se tornou minha família. Inseparável, guardava-me, alertava-me, auxiliava-me na caça e acolhia-me no fim do dia. Tornamo-nos uma extensão um do outro. Sua audição magnífica era a minha, assim como seu olfato e sexto sentido. Minha força e perícia também eram a sua. Em sua companhia, pudemos abater animais mais astutos e velozes e nos proteger de javalis bravos e de onças famintas. Juntos, nos alimentávamos de nosso sucesso e reverenciávamos um ao outro.

A presença de meu companheiro aplacou a humilhação do ostracismo que havia sofrido. Com os dias, sentia menos falta da família que jamais foi minha. Sentia, menos ainda, falta de minha família primordial. Sua presença tornara-se sombra em minha mente. Ainda sonhava com minha mãe, que foi a única faísca de ternura que havia me tocado anteriormente. Em meus sonhos, ela me segurava firme, ainda criança, e tampava meus olhos para que eu não testemunhasse os horrores da vida. Meu pai sempre se revelava como rastro de memória: evanescente, sem rosto e sem voz, apenas com sua presença quase esquecida. Não me recordava quantos éramos. Às vezes, lembrava-me de termos sido muitos, mas o teor onírico de minhas reminiscências carecia de precisão. Desimportante. O que importava para mim era meu irmão canino, com quem me preocupava e cuidava.

O tempo fluiu e, desde a surra que havia levado, não vi minha família secreta. Contudo, em uma tarde de preguiça, escutei o latido estridente de meu irmão cão próximo de onde eu estava. Corri apavorado em seu socorro. Uma serpente parda enorme, colossal, começava a abraçar uma criatura. Aproximei-me e percebi que a serpente sufocava o menino da família que havia me repudiado. O cão latia incessantemente e a criança chorava um choro abafado e apavorado. Sem pensar, peguei minha lança, corri e, como um relâmpago, penetrei minha arma na cabeça da serpente. Feito uma avalanche, cravei meus braços entre o corpo sinuoso da predadora, que ainda apertava seu abraço mortal, e resgatei a criança do perigo imbatível. O menino me abraçou e chorou o choro mais primitivo que se pode chorar. Assisti, tremendo de pavor, ao corpo enorme da serpente se debater no chão. O cão ameaçava avançar e eu gritava, proibindo-o de se aproximar. Nunca havia visto um terror como aquele e não conseguia imaginar como fui capaz de enfrentá-lo. À distância, o homem e a mulher observaram a ironia da vida. Eu, antes espancado e rejeitado, tornei-me o salvador de seus afetos. A mulher desceu do morro onde se encontrava e me abraçou com a ternura da alma. O homem me encarou e seus olhos, antes arregalados e carregados de fúria, estavam tomados por respeito e gratidão.

Nesse dia, fui aceito e passei a integrar a família. Com o tempo, aprendi com aquele homem a ser ainda melhor caçador. Ele era bruto e impaciente. Muitas vezes, quando eu era imprudente e permitia que a caça fugisse, apanhava do brutamontes que, logo depois, me estendia a mão para que tentássemos de novo. Era um bruto bondoso. Apesar do temperamento explosivo, não desistia de mim e de me fazer mais forte. Diferente era o temperamento de sua mulher, que, com paciência e delicadeza, me ensinou como cuidar de meus ferimentos e dos demais. Aprendi com ela a identificar o que a mata oferecia como alimento e como veneno, assim como fez minha mãe no passado. Ela era quieta e ensinava no agir. Pegava as ervas, retirava suas folhas e me mostrava os formatos e tonalidades. Macerava-as e as misturava com argila branca até que ficasse com uma coloração esverdeada e, depois, cobria meus ferimentos com o emplasto fabricado. Impressionava-me seu domínio da infusão. Com outras ervas, fazia bebidas que aliviavam as cólicas, dilatavam as vias respiratórias e acalmavam a mente. Já era bruxa antes das bruxas existirem.

Com as crianças, reaprendi a rir, a gargalhar, a rolar no chão e a brincar na floresta. O cão se tornou nosso guardião e a distração predileta dos pequenos. Um menino e uma menina, ambos cheios de energia, ambos cientes da dureza da vida e leves como plumas. Percorríamos o vale, os cânions e os entornos seguros. Aprendi com eles os sons que precisava fazer para cada situação: predador, água, caça, socorro, ajuda e segredos inexplorados. Para cada um, era um assobio, um grunhido ou um grito. O menino era curioso, ousado e nosso maior desbravador. Arisco em suas vontades e carinhoso em nossa intimidade. Era o nosso xodó. Mas, da mesma forma, era o epicentro das preocupações de seu pai e de todos nós. Com frequência, nos preocupava e, com frequência, precisávamos nos mobilizar em sua busca. De suas aventuras, conhecemos novos animais, novas plantas, novas cachoeiras, cavernas e grutas escondidas pela mata fechada. Temeroso dos perigos e de outras serpentes colossais, seu pai já o ensinava a empunhar a lança e a arremessar pedras. Eu também auxiliava nos ensinamentos. Comigo, ele aprendeu a subir nas árvores mais altas, a escalar paredões de pedra, a nadar em águas mais profundas e a dar comandos ao irmão cão, que o acompanhava em algumas de suas empreitadas.

A menina, como a mãe, era observadora e perspicaz. Inteligente, dominou logo o segredo das ervas medicinais, dos frutos, da argila e dos movimentos ao seu redor. Diferente da mãe, tinha parte do temperamento do pai. Era sábia e bruta. Aliou, certo dia, a lança às ervas e derrubou, em um único lance, um grande javali. Aprendemos com a pequena que toda planta tem o seu poder e sua utilidade. Seu ímpeto guerreiro não a impedia de ser meiga e de se derreter em nossos colos. Tornar-se-ia, junto de sua mãe, nossa fonte de sabedoria sobre o mundo e, junto de seu pai, uma das maiores caçadoras que conheci.

O brutamontes também detinha a sabedoria da terra. Em uma de nossas rondas de reconhecimento do território, mostrou-me que, do esterco dos herbívoros, floresciam cogumelos brancos. Abaixou-se, destacou a base do cogumelo e comeu. Em seguida, fez o mesmo e deu-me para comer. Mastiguei o alimento terroso, de textura muxibenta, e engoli. Com o tempo, fiquei ofegante; as cores vibravam e emanavam de todas as superfícies. O ecossistema respirava junto de mim, como se uma só coisa fosse. Meus sentidos se aguçaram. Ouvi mais distante e com mais clareza. Meu olfato se expandiu e os cheiros eram percebidos a distâncias inimagináveis. Meu tato, meus movimentos e minha consciência corporal se exponenciavam. Tornei-me além de mim. Assimilei a virtude do cão e a sabedoria do habitat. O bruto caçador era maior e bem mais forte do que eu. Todavia, com sua paciência e generosidade, continuou, sob o sol e sob a lua, a ensinar-me a ser mais rápido, ágil, astuto, atento e certeiro. Meu tamanho físico não importava, pois, junto deles, eu dominava cada aspecto de nosso ambiente.

Na convivência, aprendi, da pior forma, que o patriarca era um gigante ciumento. Ela, sua amante, sempre fora gentil comigo, embora se mantivesse longe e preferisse cuidar de mim, me ensinar e me amar a uma distância segura. Foi em uma aproximação inocente, quando ela se pôs a tirar carrapatos das minhas costas, que ele se jogou em cima de mim e me enforcou com as mãos. Atendendo aos gritos de sua amada, me soltou. Com seu furioso olhar, passou com clareza a sua mensagem: ela era dele, somente dele, e eu estava avisado. Apesar da inveja que sentia da natureza daquela relação, eu era consciente de meu lugar. Jamais transpus esse limite, apesar de, ainda, observar curioso quando se amavam sob as estrelas. Já compreendera os limites antes do safanão que tomei. Entretanto, a partir dali, tornou-se um imperativo.

Conheceria, mais tarde, aquela forma de amar.

As crianças cresceram, tornaram-se homem e mulher. Hipnotizado pela antes-pequena-sábia-guerreira, me aproximei com ternura e, com maior ternura, fui recebido. Conhecemos juntos e pela primeira vez sobre o amor e os segredos da perpetuação da espécie. Por meses, fugíamos para os pés de uma enorme cachoeira que juntos descobrimos, onde mergulhávamos apaixonados. Nosso amor se confundia com contemplação. Imersos no barulho da queda d’água, nossos gemidos compunham, com todos os outros sons dos arredores, a sinfonia da natureza.

Com ela, expandi a nossa família. Tivemos os nossos próprios filhos, que se tornariam bravos caçadores e caçadoras. Nos tornamos um clã, uma unidade inseparável. A vida foi boa e foi dura. Novas crianças vieram de nossas uniões; criamos, ensinamos, caçamos, fizemos mais descobertas e celebrávamos a abundância em torno de uma fogueira. Por outro lado, alguns pequenos sucumbiram à doença e às ameaças letais de nosso habitat. Meu irmão cão, já velho, nos deixou no conforto do sono. A cada um que perdíamos, ficávamos consternados, incrédulos. Acolhíamo-nos e vivíamos juntos o luto, sem, contudo, compreender o monumento que aquilo significava.

Um monumento.

Uma arquitetura ininteligível para um bicho como eu. Intrigado pela fatalidade do fim, sonhos se dispuseram a me explicar o inexplicável. Por noites, sonhava que víboras peçonhentas percorriam meu corpo e preenchiam o chão ao meu redor. As serpentes rastejavam entre as folhagens, subiam pelas minhas pernas, pelos meus braços e abraçavam meu pescoço. Não obstante, nada faziam. Eram apenas ameaças que não se cumpriam. Córregos corriam e se estreitavam em hordas reptilianas. Serpentes que viravam rio e rios que viravam serpentes, em busca de desaguar no oceano primordial. Despertava apavorado pelos pesadelos que retornavam na noite seguinte. O terror se tornou, gradativamente, um contentamento. Rodeado de cobras que se recusavam a dar o bote, percebi que aquele era o próprio teor da vida. Um coliseu de perigos onde lutamos pela sobrevivência. Habilidade, perícia, força e sorte compunham esse combate sagrado, e o desfecho pertencia somente ao acaso. Acaso ou fluxo natural? Me indagava. Em outra noite, recebi a visita onírica de um ser alienígena: parte homem, parte mulher e parte serpente. O ser se esgueirou, sensual, sobre mim. Tocou meu sexo com uma das mãos e, com a outra, enfiou os seus dedos em minha boca. Senti prazer e pavor. Com o toque, veio-me o presságio do mundo. Presenciei centenas de biomas e paisagens. Compartilhei a consciência com milhões de outras criaturas. O prazer revelou-se o próprio motor da vida, que gerava mais vida. O ser afastou-se e, suspenso no vazio cósmico, presenciei sua barriga crescer e crescer, até o momento em que a entidade, que já tomara proporções gigantescas, se deitou, abriu as pernas e, de sua vulva, nasceu a infinitude da existência. A vida seguiria independentemente e apesar das víboras e seus perigos.

Não demorou para que o monumento se impusesse novamente perante nós. Foi arrebatador o dia em que o rapaz, aquela criança que salvei da serpente, sucumbiu ao se afogar em um grande rio a montante do riacho que nos fornecia vida. Escutamos o assobio agudo e penetrante que vinha do alto. Quando lá chegamos, vimos um dos nossos, em pranto e desespero, retirar o corpo imóvel de nosso xodó da margem. O pai brutamontes saltou pedras, arrancou os obstáculos de sua frente e tomou o corpo de seu filho no colo. Nunca havia visto aquele homem chorar; entretanto, dessa vez, ele chorou por eras, um choro gutural e tenebroso. Ele sofreu como se tivessem lhe arrancado os seus membros; ele sofreu como se tivessem dilacerado a sua alma e lhe roubado o seu tesouro mais importante. Gemia, fungava e se esfregava no corpo de seu amado filho. Gritava para as estrelas e para o universo, implorando-lhes que lhe devolvessem aquela parte de si. Ninguém podia consolá-lo, nem a ternura de sua parceira. Os próximos dias foram de silêncio e de uma tristeza arrastada: pegajosa como a lama do vale dos mortos. O homem se isolou, passou dias em uma gruta próxima, imerso em inércia e apatia desconfortáveis. Não permitia que ninguém o amolasse. Com a partida de um dos nossos e sem o seu auxílio, a comida ficava escassa e precisávamos de nosso melhor caçador.

Eu sentia culpa, pois foi sob a minha influência que nosso xodó se aventurou a mergulhar nas águas traiçoeiras que corriam por aqueles lados de cima. Uma culpa maldita - pela qual tive que atravessar para aceitar a inevitabilidade da vida. Não me foi dado muito tempo. Como líder regente na ausência do brutamontes, coube a mim garantir tudo aquilo que nos faltava. E, em meu encargo, tornou-se lógico que, sem ele, encontraríamos o nosso fim.

O luto teria de terminar.

Adentrei a gruta, de forma a trazê-lo para a vida que ainda continuava. Ele me olhou, estufou o peito e ordenou que eu o deixasse. Eu não poderia; tinha que resgatá-lo de si. Me aproximei e brigamos. Levei uma pedrada na cara, socos e chutes. Mais uma vez estava sendo espancado. Retomei o fôlego e, logo depois, lhe dei uma rasteira. Derrubado, me joguei sobre ele e o imobilizei. Olhei em seus olhos e, desprovido da fala, disse com a alma e com meu olhar: “Irmão, eu compartilho de sua dor, minha alma também dói, um tesouro também me foi arrancado, mas a sua família precisa de você”. O brutamontes, trêmulo e ofegante, se acalmou, respirou fundo e retomou a consciência. Primeiro se sentou e, se apoiando em uma estalagmite, se ergueu: “Irmão, voltemos”.

Fui acometido, então, por uma clareza inédita; uma necessidade pungente de registrar o meu legado - expressão que o espírito exige. Peguei o sangue que escorria de minha cabeça, olhei para as paredes da gruta e lá me desenhei fraco e cambaleante. Depois, desenhei o tatu, ornado de honras, como a criatura que, com a sua vida, me salvou da morte. Desenhei a lança, a pedra e a serpente. Desenhei o cão. Por fim, desenhei a minha família. Deixei para os que depois viessem a gênese de nosso clã.

Saí da caverna e me deparei com um abraço terno entre o caçador e a sua companheira. Ela o olhava com os olhos lacrimejados, buscou a sua mão e a levou em direção à sua barriga. Mais vida viria. Olhei para o céu, cravejado de estrelas, e me lembrei da entidade cósmica que havia me visitado. Recordei-me, também, de que havia colhido alguns cogumelos e os havia guardado. Assobiei alto até que todos os presentes me notassem. Dei a cada um carpóforo para que comessem. Grunhi e todos, em silêncio, me acompanharam em uma trilha até as bordas do cânion que nos protegia. Acendemos uma fogueira, jogamo-nos no chão, miramos o alto e assistimos ao espetáculo celeste. Todas as estrelas do universo nos eram acessíveis e se organizavam nas constelações imemoriais que ainda não tinham sido nomeadas. Uma nebulosa coloria o infinito como aquarela e, curiosos, apontávamos cada cometa que cortava o céu. Uma sensação de comunhão profunda nos uniu e respiramos em conjunto com os pulmões do universo.

A vida havia de seguir.

Aquele lugar de abundância havia sido gentil conosco, mesmo com toda a sua dureza. Todavia, deixá-lo era um imperativo. Já éramos curiosos demais, sedentos por novas terras, novos rios e novos horizontes. Caminhar era o sentido da vida - continuar o fluxo e ser como um rio. Nos preparamos por semanas. Colhemos todos os provimentos que que podíamos; secamos carnes no sol, curtimos as peles para, do frio, nos proteger e partimos rumo à odisseia. Despedindo-me daquele vale sagrado, agradeci ao universo por cada percalço, pela família que me foi dada, pelo irmão cão e pelo xodó, que já não estavam conosco. Torci, em meu íntimo, para que outros também fossem abençoados por aquele vale, que encontrassem nossos vestígios rupestres e que construíssem os seus clãs, tão unidos como o nosso.

Atravessamos desertos, cortamos florestas densas e úmidas, cheias de tormentos e, por derradeiro, chegamos ao mar. Nesse percurso, caçamos, enfrentamos mais perigos, defendemo-nos e cuidamos de nossas feridas. Encontramos outros como nós. Outros como eu fui: fraco, sozinho e em busca de uma família. A esses outros, oferecemos acolhimento. Ensinamos aos novatos o nosso caminho, os nossos meios e a nossa sabedoria. O brutamontes e eu treinamos os mais jovens como ele havia me treinado no passado. Nossas companheiras aprenderam mais sobre as medicinas e venenos da natureza e passaram esse conhecimento adiante. Aprendemos a enterrar nossos mortos e celebrar as suas vidas para, depois, nos reunirmos e mirar as estrelas. Compreendíamos um pouco mais o monumento da morte. Na dor e no sangue, reafirmamos a importância da união, do aconchego e da família. Comemorávamos cada nova vida e gargalhávamos junto aos nossos pequenos. No trajeto, a nossa família germinou e floresceu. Tornamo-nos muitos. Nossos filhos já eram mais fortes, rápidos e inteligentes do que nós e os nossos papéis foram assumidos por outros. Tínhamos implacáveis caçadores, empenhados cuidadores e prolíficos detentores de saberes, que se expandiam a cada descoberta. Nós, que sobramos daquele núcleo original, envelhecemos e começamos a dar trabalho aos demais. E, mesmo nos maiores desafios apresentados pela velhice, jamais fomos abandonados.

No dia em que conhecemos o mar, montamos acampamento na praia. O rio, que acompanhávamos há dias, nos guiou em seu ímpeto de desaguar. O mar me tirou o fôlego. Uma imensidão aquática que ultrapassava o horizonte. Ondas furiosas deferiam golpes nas pedras e remexiam a areia. A água era salgada como as milhões de lágrimas que chorei em vida. Seria o mar o abrigo de todas as lamentações? Senti em meu âmago que, na verdade, era o agente transformador de todas as emoções, dos impulsos vitais que nele desaguam e se perdem na imensidão para outra coisa se tornarem. Por dias, contemplei sua infinitude na espera de compreender os segredos que guardava para si.

Uma floresta exuberante, ornada de coqueiros, palmeiras e árvores floridas que alcançavam o céu, cobria a costa e lá presenciamos a criatura mais magnífica que conhecemos: um ancião gigantesco com orelhas e presas enormes. Em sua face estava acoplada a tromba intimidadora que não sabíamos o que era. Tratava-se de um elefante solitário que perambulava pela floresta. Ao nos aproximarmos, ouvimos o bramido tenebroso que fez com que todos corressem para longe. O gigante era, certamente, imbatível. Deixá-lo em paz se tornou um imperativo entre nós. Sentíamos e escutávamos, de longe, o impacto das pisadas tremer o chão. Meu irmão, bem menor, uma sombra do brutamontes que tinha sido, se incumbiu de observar a criatura, mesmo sob a advertência dos demais. Concluiu, em sua pesquisa, que o animal não representava perigo, pois não se prestava a vir em nosso encalço e, tampouco, se alimentava de outros animais.

A floresta que o abrigava era exuberante, mas escassa dos alimentos que estávamos acostumados a comer. Não havia javalis, tatus ou capivaras. As aves eram mais ligeiras e os frutos ainda eram desconhecidos. A matriarca se recusava a permitir que os comêssemos, tendo já presenciado a morte de muitos por se alimentarem do desconhecido. Nossa reserva de alimentos estava no fim e já sentíamos fome. Conseguíamos nos nutrir com os poucos peixes que pescávamos. Porém, éramos péssimos pescadores, apesar de excelentes caçadores. Acometido pelo desespero, o atrofiado e velho patriarca chamou a todos e, com o traço da inevitabilidade, desenhou o titã ancião no chão.

Para ele, era a nossa única saída.

Olhamos para o rosto enrugado um do outro. Nossos corpos, cobertos de cicatrizes, eram os mapas de nossa jornada. Nossos olhos continham o brilho gentil e ofuscado da sabedoria. Porém, em seu olhar ainda queimava o fogo dos tempos passados, em que era o predador alfa e dominador das terras por onde passamos. Ao me mirar, trocamos ternura e companheirismo. Juntos, perseveramos e nos tornamos muitos. Juntos, subjugamos a morte e continuamos em frente, tropeçando nas perdas e nas tristezas mais profundas. E, juntos, acreditamos poder desafiar, por mais uma vez, o acaso.

No outro dia, acuamos o mestre ancião. As lanças, mesmo imbuídas de toxinas, não foram capazes de penetrar o couro do glorioso animal. Diante da fúria da natureza que nos desafiava, se aproximar mais seria suicídio. O brutamontes do passado se mostrava inconformado com o insucesso das investidas. Urrava e batia no peito para cada um de nós que recuava da batalha. O seu ímpeto ainda era tão imbatível quanto o de outrora. Empunhou a sua velha lança e partiu em sua investida final. Tentei alertar que o ataque seria impossível. Todavia, meu irmão, em seu espírito jovem de implacável caçador, encontrou seu fim em suas limitações físicas. Foi pisoteado pelo colosso. Eu, na ilusão de poder salvá-lo, como na vez que enfrentei a serpente colossal, me lancei em seu socorro e me entreguei, junto a ele, ao cosmos. Tive meu abdome perfurado pelas presas do titã e fui arremessado próximo ao meu velho companheiro.

Enquanto perdia meus sentidos, enxerguei mandalas que se perpetuavam e integravam o ambiente e a escuridão. O elefante foi, na verdade, um emissário divino. Por detrás dele, serpenteando, se revelou - fabulosa e magnífica - a entidade que em meus sonhos havia me visitado. Era a guardiã da passagem mais alucinante que tudo o que é vivo encontra. Braços de luz colhiam as nossas essências e, em um último olhar, vi o portal de toda a existência, o berço de toda a vida e celeiro da destruição e da criação. Reconhecemo-nos, irremediavelmente, irmãos um no outro. Irmãos escolhidos e unidos em meio à luta pela sobrevivência. Estava pleno, porque, nesse momento, selamos um pacto transcendental: seríamos irmãos em uma infinidade de novas vidas. Suspensos sobre todo o plano existencial, nos enxergamos novamente. Comprometemo-nos a cuidar um do outro através das eras e, no cosmos, reencontrar a nossa floresta de famílias, para nelas nos aconchegarmos e, depois, reiniciar o ciclo sem fim. Agradeci a ele por tudo o que fomos.

Viver foi lindo, intenso e monumental.

 

Eder de Almeida Benevides