Frequentemente, surge uma familiaridade com coisas que não
são, nem de perto, familiares: Dejá vu,
clarividência, divinação, lembrança de outra vida, ou puro processo neurológico
de associar o desconhecido a algo que se conhece. Indiferente àquilo que não
sou capaz de explicar, me permito o puro deslumbre. Quando criança, ao ouvir os
acordes de Asa Branca, logo pensava ter sido cangaceiro em vida passada. Achava
que o folclore do sertão nordestino habitava em mim e era eu mesmo quem
pendurava os folhetos em cada cordel que já existiu. Lampião e Maria Bonita
apoiavam as suas espingardas junto à porta de meu quarto enquanto eu dormia
incauto - devaneio lúdico de uma criança que ouvia muitas e muitas estórias.
Cresci ouvindo, com muita atenção e encantamento, minha tia Rita contar sobre
os segredos da reencarnação e a jornada da alma em um processo sem fim de
iluminação. Minha tia é espírita Kardecista e eu uma espécie sem jeito de ateu-agnóstico-semiespiritualizado.
Entretanto, jamais fui capaz de escapar da beleza daquilo tudo. Ao invés de
temer a um Deus portador de todas as respostas e mistérios, estaríamos fadados
a percorrer vidas e vidas em busca da resolução de nossos próprios mistérios. O
percurso da alma é o fim em si mesmo: a constante e ininterrupta evolução. De
certo, uma vida é breve demais para se percorrer todas as estradas e longa
demais para quem se recusa a caminhar. E, talvez, desse detalhe venham esses
momentos de instigante familiaridade. De uma necessidade inconsciente de viver
mais do que se é possível viver. Em cada lugar que já estive e em cada prosa
que já travei reconheci algo de mim e algo que já vivi. Coleciono, assim,
outras vidas em mim. Coleciono, também, sotaques. Me basta algumas horas de
conversa com um cabra baiano, gaúcho ou carioca que – voilá - já estou conversando como baiano, gaúcho ou carioca. Já
passei por maus bocados por pensarem ser deboche, enquanto se tratava, na
verdade, de entrega e aconchego. Me consome o fosfato do cérebro tentar
compreender de onde vem aquela afinidade pronta e automática que temos com
certas pessoas que acabamos de conhecer. Afinidade é sinergia e sinergia se tem
ou não se tem, apesar de, às vezes, surgir de onde não se tinha. E vai além da simples
identificação. É algo que habita no olhar, na linguagem corporal, na forma de
falar, de ouvir e de responder. Se encontra nos milissegundos entre um gesto e
outro. É a afinidade que permite madrugadas inteiras varadas, compreensão pelo
olhar e adivinhação de pensamento. Já tive muitas afinidades espontâneas, mesmo
que, com os anos, tenha ficado cada vez mais raro encontrar almas irmãs por aí.
Quando acontece, é como se tivesse
voltado ao lar. O coração se acalenta, as ideias fluem e os músculos relaxam. Pode
ser que seja o destino, uma força metafísica impossível de se escapar e que
tenha nos costurado uns aos outros desde o nascimento... Ou desde vidas
pretéritas, de forma que a reencarnação exista de fato e, nesse ciclo
transcendental, nos encontramos e nos desencontramos. Talvez, separados por
séculos ou milênios, não sejamos capazes de nos reconhecer mais, imprimindo o
esquecimento no próprio novelo das eras. Ou sempre nos reconheceremos,
acometidos pelo deslumbre do destino e dos segredos da eternidade.